Recentemente o governador do Rio Grande do Sul/RS (e possível candidato a presidente em 2022), Eduardo Leite (PSDB), concedeu uma entrevista em que algumas de suas falas causaram ojeriza e preocupação em indivíduos minimamente preocupados com direitos humanos (como vida/saúde).
Dentre suas afirmações destacam-se:
“Leito de UTI não é cura …. leito de UTI não é solução do Covid …. nos leitos de UTI aqueles que vão para os leitos de UTI 60% não voltam … 60% das pessoas que vão efetivamente para os leitos de UTI … morrem. Mesmo que tivéssemos a capacidade infinita não significaria salvar todas as vidas. 60% das pessoas que estivessem contaminadas e agravadas morreriam mesmo assim”.
“Todo o dinheiro foi aplicado na saúde. Agora é verdade, parte do recurso do governo federal que veio não foi para a saúde. Foi simplesmente para repor perdas de arrecadação para sustentar o serviço do estado”
Em segundo lugar, cabe contextualizar sua entrevista. Ela ocorreu após o presidente Bolsonaro revelar os valores destinados, pelo governo federal, aos estados em 2020. No caso do RS, foram destinados R$ 40.9 BILHÕES para uso no enfrentamento da pandemia.
Ou seja, o governo federal investiu, apenas no RS, R$ 40.9 BILHÕES para que esses BILHÕES fossem aplicados na qualificação do sistema de saúde, assegurando a proteção e o fomento de um ‘bem humano básico’ em particular, a saber, da vida (saúde).
O governador do RS, tal como outros governadores, repudiou a divulgação da informação com os valores recebidos do governo federal. Embora faça parte do discurso político o uso de termos como “transparência”, “lisura”, “sinceridade”, etc, parece que nem sempre transparência é uma boa política.
Mesmo a sinceridade é capaz de se tornar politicamente inviável, pois pode revelar muito do sujeito que se expressa sinceramente (ainda que por descuido). Por exemplo, na entrevista acima referida, a talvez inadvertida sinceridade do governador pode lhe causar algum prejuízo político.
Por que?
Ora, inicialmente ele mostra sua limitação quanto ao que se sabe acerca do lockdown. Ele alega que máscaras e álcool gel funcionam, mas são “insuficientes”. Segundo ele, é necessário “fazer algo mais grave, algo mais duro”, o lockdown. Não vou me ocupar dessas medidas aqui, pois o fiz didática e recentemente nesse texto:
(No texto acima indico as devidas referências a pesquisas que mostram a nocividade tanto do lockdown quanto da obrigatoriedade do uso de máscaras por pessoas saudáveis, bem como apresento as pesquisas mais recentes, conduzidas por pesquisadores com credenciais acadêmicas notáveis, explicitando a eficiência do tratamento precoce no combate ao coronavírus, o que não apenas evitaria o colapso do sistema de saúde, mas, mesmo, os descomedidos óbitos registrados até agora).
Sem embargo, voltando à fala do governador, em uma aparente tentativa de minimizar o fato de o governo do RS não estar investindo satisfatória e eficientemente os R$ 40.9 BILHÕES recebidos do governo federal para o combate à pandemia, ele afirma que “leito de UTI não é cura … leito de UTI não é solução do Covid”. Afinal, segundo ele, 60% das pessoas que ingressam na UTI morrem.
Assim, naquilo que vejo como uma espécie de desdém pelas vidas humanas perdidas em uma UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), ele afirma que “60% das pessoas que estivessem contaminadas e agravadas morreriam mesmo assim”. Dito de outra forma, por que investir em UTIs se, a cada 10 internações, 6 vidas humanas individuais serão perdidas mesmo?
Em meu juízo trata-se de um raciocínio perverso, pois torna claro que desde o início da pandemia o propósito não é “salvar vidas”.
Por certo o ingresso em uma UTI não é garantia de recuperação. No entanto, do fato de 60% dos que vão para uma UTI morrerem se depreende que devemos reduzir investimentos nesse sistema que salva 40% dos pacientes? Aliás, esses 60% morrem inevitavelmente ou porque há precariedade e falhas em seu atendimento, mesmo na UTI?
Esse número não poderia ser reduzido com a qualificação (mediante investimento) dessas UTIs? Será que se trata do “destino” de 60% dos pacientes de UTI morrerem impreterivelmente? Não poderíamos reduzir esse índice desalentador?
Mas, sigamos o “raciocínio” do governador e nos perguntemos: será o caso de nós também não investirmos em pacientes com AIDS, tendo em vista que o índice de óbitos pode superar os 60%? De acordo com o ‘Boletim Epidemiológico HIV/AIDS 2020’, por exemplo, 61.7% das pessoas negras sucumbiram à doença (37.7% dos brancos). Ou seja, para que investir no tratamento da doença desse grupo se 61.7% deles irão a óbito mesmo?
(Em verdade, foi justamente por se ter investido em seu tratamento que esse índice, apesar de alto, é menor do que no passado).
Vejam, então, a desumanidade desse “raciocínio”, o qual pode, em minha opinião, nos conduzir a graves violações do direito fundamental à vida, bem como à ideia hedionda de que alguns são mais ‘dignos’ de viver do que outros. Não é preciso refletir muito para que nos apercebamos que esse tipo de mentalidade já surgiu na história recente, e os resultados foram hediondos.
Poderíamos recorrer a outros exemplos, mas creio que esse nos ajuda a perceber a gravidade da fala do governador, bem como suas implicações aterradoras.
Quanto à segunda afirmação que destaquei ao início desse texto, nela ele entra em evidente contradição ao afirmar que “todo o dinheiro foi aplicado na saúde. Agora, é verdade, parte do recurso do governo federal que veio não foi para a saúde”. Sim: “TODO o dinheiro foi aplicado na saúde”.
Mas, “PARTE do recurso (…) não foi para a saúde”. Diante disso, mesmo um sujeito não alfabetizado se pergunta: se TODO o recurso foi usado na saúde, como PARTE desse dinheiro teve outro uso? Estaria ele fazendo uma afirmação mentirosa seguida de uma afirmação verdadeira que contradiz a primeira? Que retórica obtusa é essa?
Ora, obviamente nem todo o dinheiro foi para a saúde, uma vez que parte desse montante BILIONÁRIO teve outro destino, o qual deveria, aliás, ser auditado, esclarecido e publicizado. No entanto, de forma a meu ver vaga, ele apenas diz que essa ‘parte’ indefinida dos BILHÕES foi usada para “repor perdas de arrecadação para sustentar o serviço do estado”.
Parece-me que o que ele está tentando dizer é que essa parte foi usada especialmente para pagar o funcionalismo público. Sim, nem todos estão em casa sem receber. Há uma elite que está em casa (“home office”), mas continua recebendo seus proventos. Por certo há aqueles empenhados em trabalhar. Mas dentre eles há uma casta “superior” abonada e defensora do “fique em casa”, independentemente da desgraça que o “fique em casa” tem causado na vida de milhões.
Mas, em resumo, a meu ver a fala do governador suscita sérias reflexões sobre a violação de direitos humanos. Afinal, a vida (saúde) é um bem humano fundamental, o qual está inerentemente ligado ao fundamento de todo direito humano, à dignidade da pessoa humana. Tais direitos não são atribuídos, concedidos: eles são assumidos em toda forma de vida humana individual.
Nesse sentido, na medida em que, da concepção à morte, temos uma forma de vida humana individual, cabe fomentar tal vida ao longo de todo esse período. Assim, não investir em UTIs porque mais da metade das pessoas internadas tendem a morrer quando são encaminhadas para elas, é uma grave violação do direito à vida, um crime de lesa humanidade. Os direitos humanos são tão valiosos quanto frágeis, de tal forma que é necessário que instituições os protejam e fomentem.
Desse modo, quando instituições, ao invés de os preservarem, os violam, temos um caso de crise humanitária grave, o que parece estar acontecendo em diversos lugares do mundo, tal como vem ocorrendo no RS.
Assim, a fala do governador foi, a meu ver, infeliz e desumana, pois enviou uma mensagem preocupante de inspiração eugenista: a de que não vale a pena investir naqueles que muito provavelmente vão morrer mesmo (pois estão “destinados” a morrer em breve). Imaginem se os grandes cientistas descobridores dos fármacos e tratamentos que aumentaram nossa longevidade pensassem assim.
Talvez estivéssemos extintos. De qualquer forma, pelo que podemos depreender da fala do governador, importa mais assegurar o pagamento em dia do funcionalismo público do que investir em UTIs para assegurar um aumento no índice de recuperações (atualmente, segundo ele, de 40%).
Sim, pois um investimento mais robusto em UTIs e no sistema de saúde de uma maneira mais abrangente não apenas daria o destino adequado para os R$ 40.9 BILHÕES recebidos do governo federal para o combate à pandemia, mas resguardaria e promoveria o bem humano fundamental “vida”, a meu ver a base dos demais, especialmente se considerarmos que sem vida não desfrutaríamos de bem humano algum, tampouco da felicidade de uma vida bem vivida.
Aqui há um vídeo com partes da entrevista do governador:
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