O “Supremo Tribunal da Internet” não é mais piada: o Facebook já fez um

Foto: Bigstock

Diante das tentativas de regulamentação de diversos governos, Big Techs tentam construir suas próprias instituições de governo paralelo.

O Facebook deve ou não deve devolver a conta do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump? A pergunta deve ser respondida em breve por uma espécie de Supremo Tribunal da Internet, criado pelo Facebook e pertencente a ele. Quem acompanha de perto as diversas tentativas de regulamentação das Big Techs pelo mundo sentiu o coração parar diante do artigo da professora de direito Kate Klonick na última edição da revista New Yorker. Ela relata casos concretos do projeto que desenvolve pela Universidade de Yale, acompanhar a criação do Oversight Board do Facebook.

A máscara da liberdade de expressão caiu. O Facebook se viu, nos últimos 10 anos, enredado em uma teia de vazamento de dados, experimentos psicológicos indevidos, relacionamentos com grupos radicais, recrutamentos para grupos terroristas, fake news e radicalização política. Depois de ser apontada mundialmente como um risco para a democracia, a plataforma disse que vai resolver tudo com o tal Oversight Board, um conselho de notáveis. A professora de Yale o chama de Suprema Corte do Facebook.

O Conselho tem dezenas de notáveis, incluindo ativistas de direitos humanos mundialmente reconhecidos, pessoas agraciadas com prêmios Nobel e ex-primeiros ministros. Há representantes de diversos países e culturas diferentes. A intenção é que este conselho – e não mais a empresa – defina os limites entre discurso de ódio e liberdade de expressão. O processo de criação envolveu workshops com especialistas no mundo todo, em cidades tão diversas quanto Nova Iorque, Nova Délhi, Nairóbi, Berlim, Cidade do México e Kuala Lumpur. O relato da professora Kate Klonick começa na primeira reunião envolvendo casos concretos.

Todo esse time de notáveis foi apresentado a um post removido pelo Facebook. Era a foto de uma garota em um anuário escolar com um balão onde se lia “Matem todos os homens”. O Facebook removeu o conteúdo com base em discriminação por sexo ou identidade de gênero. Mas uma das participantes do Oversight Board arguiu que era só uma piada, o que a plataforma libera. Existe a preocupação de que a intenção por trás de algumas piadas não seja produzir humor, mas maquiar discurso de ódio e normalizá-lo. É um dos métodos neonazistas catalogados, por exemplo, no manual de radicalização de Andrew Anglin, fundador do Daily Stormer, difundido no mundo todo. O suposto humor seria uma forma de desumanização capaz de levar pessoas normais a gargalharem diante da morte de um alvo específico.

Como diferenciar humor ousado de doutrina radical fantasiada de humor? A representante de uma organização de direitos humanos, relata a professora, arguiu que é necessário levar em conta a dinâmica de poder. Como mulheres estão, historicamente, em desvantagem de poder, estava claro que uma mulher dizer “Matem todos os homens” só pode ser uma piada. Teoricamente, pode até fazer sentido. Ocorre que as plataformas lidam com a prática e, em muitos casos, a teoria na prática é outra. Mas o Oversight Board concordou com a ativista e o post voltou à plataforma. No entanto, o ajuntamento de notáveis não foi capaz de escrever uma regra objetiva descrevendo a atitude que acabava de tomar.

O impasse ocorre porque a decisão não foi unânime, foi votação apertada em que muitos países tiveram notáveis veementemente contra a manutenção do post. Em Nova Iorque, onde floresce a elite progressista e woke, a frase “Matem todos os homens” é vista como humor por apenas 60% dos conselheiros. Em Nairóbi, no Quênia, onde foram inauguradas as lives de atentados terroristas, menos da metade dos conselheiros vêem graça na postagem. É uma tendência que a tolerância esteja atrelada às preocupações reais com segurança de um local ou uma população.

Sob o ponto de vista prático, é impossível que o Oversight Board do Facebook analise cada caso de post e conta derrubados ou por derrubar. Mas há uma utilidade subreptícia muito interessante, a de começar a utilizar linguagem governamental e atribuição de funções das instituições a uma empresa privada. Em 2018, Mark Zuckerberg tentou emplacar, numa entrevista ao portal Vox, a ideia de ter uma “corte de apelações” que dizia ser necessária, como em “toda democracia saudável”. É o primeiro caso em que se chama de democracia algo que tem dono.

Embora a plataforma tente emplacar a narrativa de que é uma iniciativa democrática, há uma problema para além da qualidade técnica dos conselheiros. Nas democracias, todo poder emana do povo e em nome dele é exercido. No Oversight Board, todo poder emana do Facebook e em nome dele é exercido. O conselho não tem nenhum poder real sobre a plataforma, ela é que manda nele e segue as regras porque e quando está com vontade.

O Facebook tentou se distanciar o máximo possível do Oversight Board, evitando colocar os conselheiros na folha de pagamento. Abriu um fundo de US$ 130 milhões para remunerar com salários na base de US$ 100 mil por 15 horas semanais luminares dos 4 cantos do planeta. Diariamente a plataforma recebe cerca de 200 mil recursos sobre posts e contas suspensas. O conselho julga aquelas que elege como mais significativas, embora ninguém saiba objetivamente o que isso significa e quem é o responsável pela escolha. Não há argumentação oral, utiliza-se um software em que um grupo coloca sua tese à prova dos demais para votação online.

Há também um ponto interessante no que é passível de “recurso” ao Supremo Tribunal do Facebook. Só se pode recorrer dos posts que foram tirados do ar, pedindo para que voltem. Ocorre que uma gigantesca parte das reclamações é exatamente sobre o oposto e disso o conselho não trata. Nos casos em que o Facebook opta por manter a postagem ou até mesmo o impulsionamento pago de teorias conspiratórias, difamação, ameaças, perseguição individual ou discurso de ódio, não há nenhum tipo de recurso à justiça particular criada pela plataforma. Aqui no Brasil, uma das soluções é recorrer à Justiça tradicional mesmo.

Uma das grandes questões ainda é quanto poder o Oversight Board deve ter sobre o Facebook. Isso ainda não está definido. Para aqueles que ficam empolgados com os nomes dos notáveis participantes do conselho, o poder deve ser o máximo possível. Quem é do ramo teme o risco de se jogar o bebê fora junto com a água do banho. É possível que, focados no conteúdo, os especialistas encontrem uma solução que seja o tiro de misericórdia na monetização da plataforma. Temos de reconhecer que as Big Techs trouxeram inúmeros benefícios à humanidade, nosso desafio é lidar com os efeitos colaterais sem tirar aquilo que nos traz benefícios.

Na lógica do mundo analógico, focamos no conteúdo. Na lógica do mundo digital, tão importante quanto o conteúdo é o contexto. Ao formar o Oversight Board, o Facebook coloca ao redor da plataforma vários de seus críticos mais rígidos. Alguns deles chegaram a se manifestar publicamente contra políticas da empresa nas reuniões do conselho. Ocorre que agora eles passam a ser forças internas regiamente remuneradas, não mais forças externas que pressionam por mudanças ou regulamentação das Big Techs.

O próximo grande desafio do conselho será o caso Trump. O ex-presidente norte-americano já tentou de tudo para colocar seus apaniguados entre os votantes, sem sucesso. Mas a grande questão não é se ele vence ou não nesse conselho é se a este mecanismo será dada a legitimidade para decidir questões que devem estar a cargo da institucionalidade e da cidadania. Liberdade de expressão pode ser privatizada? Existe liberdade privatizada? Enqunto o Oversight Board é uma das manobras de marketing mais bem sucedidas da história das Big Techs do Vale do Silício, o Congresso dos Estados Unidos continua trabalhando na regulamentação dessas empresas. Bom ou ruim, ele pode até ter sido ajudado por elas na campanha, mas foi eleito pelo povo e não é um projeto privado de poder.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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