O STF, com seu abusivo e ilegal inquérito das fake news, está fazendo escola. Agora foi a vez de o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, transformar a corte em vítima, investigador e julgador, em uma ação aberta por iniciativa própria (ou seja, sem provocação do Ministério Público) no dia 19 para investigar a suposta intenção de procuradores da Lava Jato de analisar a movimentação patrimonial de ministros do STJ, de acordo com supostos diálogos entre procuradores obtidos com os hackers presos na Operação Spoofing. Assim como no caso do STF, também este inquérito nasce repleto de irregularidades evidentes, mas que não impedem seus fautores de seguir adiante, cientes de que muito provavelmente jamais terão de responder à sociedade sobre as arbitrariedades que promovem.
Os dois inquéritos têm muitas irregularidades em comum, como o foro adequado onde tais investigações deveriam ocorrer. Praticamente nenhum dos investigados no inquérito das fake news detém prerrogativa de foro, motivo pelo qual ele jamais deveria estar correndo no Supremo. O mesmo vale para os procuradores da República que são o alvo do inquérito do STJ, pois eles teriam de ser julgados em um Tribunal Regional Federal. Além disso, a Lei Complementar 75/93, que trata da organização e do estatuto do Ministério Público Federal, afirma, no parágrafo único do artigo 18, que membros do MPF só podem ser investigados por outro membro do MPF, designado pelo procurador-geral da República.
O inquérito do STJ é especialmente ilegal e arbitrário por ser aberto com base única e exclusivamente em uma evidência ilícita, o que é inconstitucional
E, se por um lado o inquérito das fake news começou sem nenhum fato específico a apurar, enquanto o do STJ tem ao menos um ponto de partida concreto, por outro lado ambos também parecem dispostos a criar o “crime de intenção”. Em 2019, logo após o ex-procurador-geral Rodrigo Janot dizer que chegou a ir armado à sede do STF em 2017 para matar o ministro Gilmar Mendes, o que acabou não ocorrendo, o relator Alexandre de Moraes passou e muito do ponto: se fazia sentido cassar o porte de armas de Janot e determinar que ele não chegasse a menos de 200 metros de qualquer dos integrantes do STF, a busca e apreensão nos endereços residencial e comercial do ex-procurador-geral, com apreensão de armas, telefones celulares e computadores, foi medida totalmente desproporcional e arbitrária, verdadeira tentativa de intimidação. Pois o mesmo ocorre agora com os procuradores, quando tudo o que se sabe é que supostamente houve uma conversa sobre a possibilidade de levantar dados de ministros do STJ. E não existe responsabilização judicial sobre meras intenções – o contrário seria a intromissão do Estado sobre as consciências das pessoas, no que chamamos, ao comentar o caso de Janot, de “Minority Report da vida real”.
Mas o que confere um grau adicional de ilegalidade e arbítrio ao inquérito do STJ é o fato de ser aberto com base única e exclusivamente em uma evidência que não apenas é frágil – já que nem mesmo a perícia da Polícia Federal foi capaz de comprovar a autenticidade das mensagens –, mas completamente ilícita, já que oriunda de um crime, a invasão dos celulares de autoridades. E, por mais que se argumente que esse tipo de prova pode ser usado em defesa de um réu, é evidente que não se pode empregá-lo para prejudicar um investigado ou réu. Pretender que o material da Operação Spoofing seja usado para punir procuradores é violar frontalmente o inciso LVI do artigo 5.º da Carta Magna, além do parágrafo único do artigo 25 da Lei de Abuso de Autoridade, que pune “quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude”.
E não se pode nem mesmo alegar que a prova ilícita está apenas sendo usada para dar início a uma investigação que tentaria encontrar evidências lícitas da suposta obtenção ilegal de dados de ministros do STJ. Isso porque, ao ter como ponto de partida o produto de um crime, a operação toda está viciada, pela doutrina dos “frutos da árvore envenenada”. Foi por se basear apenas em evidência ilícita que, em 2019, o então corregedor-geral do Ministério Público, Orlando Rochadel, arquivou reclamações no Conselho Nacional do MP contra Deltan Dallagnol, ex-coordenador da força-tarefa da Lava Jato. É o mesmo destino que deveriam ter o inquérito do STJ, bem como uma apuração interna no CNMP e uma investigação na PGR, ambas solicitadas por Martins em ofício datado do último dia 5.
Aos poucos os adversários da Lava Jato vão perdendo o pudor. Que haveria uma ofensiva contra a mais bem-sucedida operação de combate à corrupção da história do país era evidente. Esta reação começou dentro do marco legal, por exemplo com a aprovação, no Congresso, de leis como a de abuso de autoridade ou a desfiguração do pacote anticrime. Depois, passou-se a usar brechas na lei ou na jurisprudência, como nas decisões que anularam condenações em que corréus delatados não puderam entregar suas alegações finais depois dos corréus delatores (por mais que tudo tenha ocorrido em respeito absoluto ao Código de Processo Penal). Por fim, a reação chega a uma nova fase em que material ilícito é usado sem a menor cerimônia para promover a perseguição aos membros da (agora dissolvida) força-tarefa, por mais que a Constituição diga o contrário. Ilegalidade, abuso e arbítrio jamais serão palavras fortes demais para descrever os métodos de quem quer encurralar a Lava Jato.
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