A publicação do edital do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) 2023, na última sexta-feira (12), foi recebida com críticas por parte de alguns educadores e parlamentares, que pedem a suspensão do certame. Para opositores, o PNLD teria deixado de observar princípios éticos e democráticos imprescindíveis. Representantes do Ministério da Educação (MEC), por sua vez, negam a retirada de temas importantes e falam em “polêmica desnecessária”.
O edital para a seleção dos materiais e seu conteúdo é, em última instância, responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia ligada MEC. Trata-se de um dos programas que envolve mais recursos e que demanda uma logística intensa para a distribuição de mais de 150 milhões de livros todos os anos.
Nesta edição, são contemplados livros didáticos para alunos e professores do ensino fundamental I, etapa voltada a crianças entre seis e dez anos. Segundo o MEC, a principal mudança do PNLD 2023 é que o edital prioriza as áreas de português e matemática, aprimorando conteúdos voltados, sobretudo, à alfabetização – aposta do governo na Educação.
A deputada Tabata Amaral (PDT) foi uma das primeiras a criticar o documento, horas após sua publicação. Nas redes sociais, ela denunciou o que considerou como “uma série de problemas muito preocupantes” no edital. A parlamentar se referia ao fato de que temas relacionados ao respeito à diversidade teriam sido “retirados” do PNLD 2023. Ela apontou, ainda, que os últimos editais estabeleciam proibições claras a livros de cunho racista e que colocavam mulheres em posição de inferioridade ou que reproduziam preconceitos regionais. Ela cita ainda que falta incluir “temática de gênero”, inclusive “no que diz respeito à homo e transfobia”.
“Supressão de princípios éticos e democráticos”
As críticas levantadas pela deputada dizem respeito ao fato de que o certame de 2019 estabelecia “critérios mais claros” quanto à importância das obras adotarem compromisso educacional com pautas contra a violência à mulher e contra o preconceito regional, por exemplo. Para Tabata, há uma “supressão de diversos princípios éticos e democráticos que constavam no edital anterior”. “Tais mudanças contrariam as diretrizes do [próprio] PNLD”, disse ela.
“Não podemos deixar que livros de cunho racista, que reproduzem a desigualdade entre homens e mulheres, preconceituosos, com nordestinos, por exemplo, sejam comprados com dinheiro público e colocados em sala de aula. É isso que quero evitar”, publicou ela no Twitter.
A atualização, ainda para a deputada, “deturpa a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)”. O documento, de fato, direciona as metodologias de educação a partir de uma perspectiva de “respeito às diversidades”, mas trata-se apenas de uma orientação os currículos a nível municipal e estadual.
“53% dos estupros que acontecem no Brasil, acontecem com meninas de menos de 13 anos de idade. Fingir que essa realidade não existe, tapar os olhos, não ajuda a ninguém. E só coloca nossas crianças em maior risco”, escreve ela. “É claro que há metodologias adequadas para tratarmos de temas tão complexos com cada criança dependendo da sua idade. Mas é na escola que elas terão alguma chance de aprender que ninguém deve tocá-la sem o seu consentimento, e aprender a denunciar esse tipo de abuso”.
“Polêmica desnecessária”
De fato, o edital do PNLD 2023 atualiza os critérios gerais para a avaliação pedagógica das obras. Muitos dos tópicos apresentados na edição anterior são substituídos por termos mais amplos, como a promoção de “valores cívicos, como respeito, patriotismo, cidadania, solidariedade, responsabilidade, urbanidade, cooperação e honestidade”.
A edição de 2023 também condiciona a seleção das obras à necessidade de estarem “livre de preconceitos ou discriminações de qualquer ordem e estarem isentas de qualquer forma de promoção da violência ou da violação de direitos humanos”. O MEC, contudo, deixa de estabelecer proibições claras a livros com abordagem de “temática de gênero segundo uma perspectiva sexista não igualitária, inclusive no que diz respeito à homo e transfobia” e abordagens de “relações étnico-raciais, do preconceito, da discriminação racial e da violência correlata, de forma não solidária e injusta”, por exemplo.
O Ministério justifica que o certame, além de cumprir os requisitos legais aplicáveis, está em alinhamento com a Base, documento que estabelece, entre outras coisas, que temas como “violência contra a mulher” devem ser abordados na disciplina de História no 9º ano – grupo para o qual não se destina o atual edital do PNLD.
“Essa foi uma escolha feita pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2017 e está claramente descrita na habilidade EF09HI26”, escreveu o titular da pasta, Milton Ribeiro, em seu perfil no Twitter. “A respeito do preconceito regional, o edital preconiza o respeito a todos os brasileiros e à Constituição e, em seu item 2.3.10, destaca que deve ser representada a diversidade cultural do país nos enfoques e exemplos das obras. Diversos ministérios, além do MEC, estão engajados para enfrentar os problemas da violência, do racismo, da pobreza, entre outros”.
“Além disso, sabemos que, infelizmente, muitos professores são agredidos e desrespeitados todos os dias. Os novos livros didáticos deverão promover valores cívicos, como o respeito, patriotismo, responsabilidade e honestidade, bem como o respeito aos mais velhos”.
Carlos Nadalim, da Secretaria de Alfabetização (Sealf), também saiu em defesa do edital nas redes sociais. Em vídeo, ele fala em “polêmica desnecessária” que decorre da má compreensão do edital. “É um edital baseado em evidências científicas […] apresenta critérios muito claros e objetivos para a elaboração de materiais didáticos”, defende.
Na esteira das discussões, e após Tabata Amaral e o deputado Felipe Rigoni (PSB) terem protocolado um Projeto de Decreto Legislativo (DPL) a fim de sustar o edital, internautas pressionaram o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), por meio de hashtags no Twitter como #LiraAprovaPNLD. O assunto chegou a ser um dos mais comentados da rede na segunda-feira (15).
Lira não fez menção direta ao PNLD. “Sou nordestino antes de tudo e penso também que o racismo, o preconceito e a violência contra a mulher são abomináveis e devem ser combatidos desde cedo. A educação deve dar a cada cidadão a capacidade crítica para seguir a sua caminhada formando seus julgamentos e pontos de vista”, escreveu Lira.
“Aqui na Câmara a hora é do nós – e vamos ouvir e acolher todas as manifestações. A maioria prevalecerá como acontece na democracia. E o povo tem legitimidade de manifestar -se e mobilizar seus representantes”.
Sexualidade deve ser abordada em escolas?
Especialistas divergem sobre se e em quais etapas o tema deve ser abordado nas escolas. Ouvidos pela Gazeta do Povo no último ano, educadores concordam, de modo geral, que o assunto deve começar a ser introduzido em casa, da maneira como parecer conveniente aos pais e de acordo com valores familiares.
Os dados, contudo, apontam para uma conjuntura preocupante. Mapeamento de 2019 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), por exemplo, aponta que pelos menos 40% dos crimes de violência sexual infantil no país foram cometidos por pais ou padrastos.
Ainda, 14% dos crimes dessa natureza foram cometidos pelas mães das vítimas, 9% pelos tios, 7% por vizinhos e os outros 30% dos casos são de responsabilidade de “outros”. Pelo menos 73% dos crimes de violência sexual infantil aconteceram na casa da própria vítima, e as autoridades estimam que apenas 10% dos crimes são denunciados.
Portanto, para grande parte dos especialistas, uma educação sexual escolar que respeite o desenvolvimento físico, psicológico, afetivo, cognitivo e, sobretudo, sexual de uma criança oferece ferramentas e caminhos para diagnosticar possíveis abusos ou, através de denúncia, interrompê-los.
Um dos principais fatores que impede um diálogo aberto sobre o tema, no entanto, é a confusão em torno do termo “educação sexual”, que tem sido, muitas vezes, interpretado de forma equivocada. Há pessoas que costumam associar à terminologia, rapidamente, imagens de professores ensinando alunos do ensino fundamental a colocar camisinhas em órgãos sexuais ou, por exemplo, aulas sobre “como fazer sexo”. Embora (e infelizmente) exemplos como esses tenham realmente ocorrido, não é disso que se trata a verdadeira educação sexual. A recusa por parte das instituições em abordar o tema – visto como tabu – ou, até mesmo, de denunciar às autoridades casos de violência sexual, tem sido uma porta facilitadora para os abusadores.
Be the first to comment on "Programa de livros didáticos vira alvo de educadores e deputados. Entenda por quê"