Em um dos golpes baixos lançados pelo petismo na campanha da reeleição de Dilma Rousseff em 2014, uma peça publicitária mostrava comida desaparecendo da mesa de uma família, enquanto se afirmava que esse seria o efeito da aprovação da autonomia do Banco Central, defendida pela candidata Marina Silva. No fim, Dilma foi reeleita e o que fez a comida sumir da mesa do brasileiro foi a perda do seu poder de compra, resultado da inflação gerada pela “nova matriz econômica” do lulopetismo e que ultrapassou os 10% em 2015. Também durante a campanha de 2014, a taxa básica de juros, a Selic, ficou travada em 11% para voltar a subir logo após o segundo turno, continuando a reversão de uma redução voluntarista e insustentável dos juros ocorrida ao longo de 2011 e 2012, quando a Selic caiu de 12,50% para 7,25%.
Esse tipo de interferência não voltou a ocorrer depois que Dilma teve seu mandato cassado. Mas agora, com a aprovação do projeto de autonomia do Banco Central na Câmara dos Deputados, na quarta-feira, o risco fica definitivamente sepultado. Como os deputados não fizeram alterações no texto que havia vindo do Senado, falta apenas a sanção de Jair Bolsonaro para que as novas regras passem a valer. O presidente e os diretores do BC continuam a ser indicados pelo presidente da República e sabatinados pelo Senado, mas agora têm mandatos fixos, de quatro anos, e não coincidentes com os mandatos presidenciais, com direito a uma recondução. E, ao contrário do que ocorre hoje, só poderão ser demitidos em três casos: se pedirem demissão; se tiverem condenação criminal transitada em julgado; ou por iniciativa do presidente da República, mas com necessidade de justificativa e aprovação do Senado.
Longe de “entreguismos”, o real sentido da autonomia do BC é preservar a instituição da ingerência política, dando mais credibilidade à política econômica
A esquerda usou de todos os recursos possíveis para impedir a votação, e tanto na terça-feira, quando a Câmara aprovou o regime de urgência para o projeto, quanto na quarta-feira, durante a votação do projeto propriamente dito, insistiu na tecla do “entreguismo”, como se tornar o Banco Central autônomo significasse entregar sua chave para os bancos. Um slogan totalmente distante da realidade – até porque o controle das nomeações continua nas mãos do presidente da República e do Senado –, mas que é fácil de invocar, tem múltiplas utilidades (basta ver como ele também é usado para combater privatizações) e mascara o fato de que o real sentido da autonomia do BC é preservar a instituição da ingerência política, dando mais credibilidade à política econômica. Um presidente da República interessado em políticas populistas e fiscalmente irresponsáveis terá muito mais dificuldades para remover presidentes do BC que estejam fazendo um bom trabalho – e tanto o atual, Roberto Campos Neto, quando seu predecessor, Ilan Goldfajn, chegaram a ser escolhidos os melhores do mundo em suas áreas, respectivamente em 2021 e 2018.
Muito mais relevante que a discussão sobre “entreguismo” foi o debate sobre o chamado “mandato dual”, ou a missão do Banco Central. O projeto aprovado no Senado e mantido na Câmara estipulou como objetivo principal do BC o controle da inflação, mas acrescentou objetivos secundários: o pleno emprego e o desenvolvimento econômico. Emendas ao texto-base tentaram colocar estas outras duas missões em pé de igualdade com o controle da inflação, mas foram rejeitadas. De fato, por mais que um mandato dual puro exista em outras economias – o Fed norte-americano, por exemplo, busca a estabilidade de preços e o pleno emprego –, isso poderia levar a situações em que objetivos diversos pedem políticas monetárias diversas, e às vezes até opostas. Com a prioridade dada ao controle de preços, a cúpula do BC tem mais segurança a respeito das atitudes que deve tomar se a inflação chegar a níveis preocupantes.
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