Na quarta-feira (27), sob protestos de grupos feministas, entrou em vigor na Polônia uma decisão do Tribunal Constitucional do país proibindo o aborto em casos de doenças graves ou má formação do feto. Com a promulgação da nova decisão, a Polônia passa a ser o único país europeu com mais de 1 milhão de habitantes a restringir o aborto nessas situações.
Antes, a lei polonesa permitia a realização de aborto quando houvesse “deficiência grave e irreversível ou doença incurável” que ameaçasse a vida da criança. Poloneses pró-vida alegavam que essa lei era, na prática, um tipo de eugenia.
Quando a norma foi declarada inconstitucional, em outubro do ano passado, a própria presidente do Tribunal Constitucional, Julia Przylebska, fez essa comparação entre a eugenia e a lei do aborto. O governo polonês, que defendeu o veredito do tribunal, dizia que o objetivo da decisão era evitar o “aborto eugênico”. Jerzy Kwasniewski, presidente do grupo de juristas poloneses Ordo Iuris, que defende causas pró-vida, disse que a decisão “era uma avanço” e removia o “aborto puramente eugênico” da lei polonesa.
Estabelecer um vínculo entre as leis do aborto e a prática da eugenia pode parecer um exagero retórico. No entanto, números divulgados recentemente sobre o extermínio de crianças deficientes em gestação nos países europeus mostram que, de fato, há uma seleção genética em curso.
Aborto reduz nascimento de crianças com síndrome de Down em 54% na Europa, afirma estudo
Em um estudo publicado em dezembro no European Journal of Human Genetics, constatou-se que há uma redução significativa na população de pessoas com síndrome de Down na Europa, e que essa diminuição está diretamente relacionada com a prática do aborto.
“Em 2015, estimamos que 417 mil pessoas com síndrome de Down vivam na Europa; sem as interrupções voluntárias, haveria cerca de 572 mil pessoas com síndrome de Down, o que corresponde a uma taxa de redução populacional de 27%”, afirmaram os pesquisadores.
Entre 2011 e 2015, segundo o estudo, os abortos de crianças com síndrome de Down reduziram a quantidade de nascimentos de pessoas com essa condição em 54% na Europa. Os pesquisadores estimaram que, sem a opção do aborto, cerca de 17,3 mil crianças com Down nasceriam anualmente nesse mesmo período, mas, com o aborto, o número caiu para cerca de 8 mil crianças por ano.
Os casos mais graves são os da Espanha, onde a redução estimada foi de 84%, e de Portugal, onde houve uma diminuição estimada de 80%. Na Polônia, onde a lei que permitia o aborto em casos de doença grave ainda vigorava entre 2011 e 2015, a redução estimada de nascimentos de crianças com Down foi de 57%.
“Já existe uma eugenia escamoteada”, diz especialista
André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia do Direito pela Unicamp e autor do livro “Livre para Nascer: o Aborto e a Lei do Embrião Humano”, afirma que as leis que liberam o aborto em casos de doenças graves ou má formação da criança geram “uma espécie de eugenia silenciosa”. Ainda é cedo, segundo ele, para falar que haja eugenia como política de estado, mas “já existe uma eugenia escamoteada, como política privada dos indivíduos”.
“A ideia do exame pré-natal sempre foi acompanhar a fecundação e, na medida do possível, direcionar para que aquele embrião nascesse com vida. Sempre foi essa a intenção. De uns tempos para cá, os exames pré-natais ficaram cada vez mais apurados em termos de eficácia, e houve um desvirtuamento”, afirma ele.
No caso da síndrome de Down, como não é difícil detectar a trissomia do cromossomo 21, os pré-natais se tornaram, em países com aborto permitido, um instrumento para dar aos pais a opção de continuar ou não com a gestação. “Quando o exame pré-natal passar a ser usado com essa finalidade, evidentemente a eugenia como política privada já está correndo solta”, diz Fernandes.
Para o especialista, com a descriminalização do aborto para esses casos, o critério das leis migra “de um aspecto objetivo, que é a fecundação da mãe, para um aspecto subjetivo”, que diz respeito a questões afetivas daquele que escolhe se o bebê deve nascer ou não. “Há uma privatização da noção de indivíduo. Aquele ser passa a ser indivíduo se eu não sentir agressão, se eu sentir uma identidade afetiva e psicológica”, diz. “Passa a ser pessoa aquilo que eu entender que é. E aí cada um usa seu argumento”, acrescenta.
Fernandes aponta um viés utilitário nos argumentos de pessoas que defendem o aborto em casos de doenças graves. Essa visão, afirma ele, “mede a partir de um mesmo cálculo utilitário duas coisas que, em si, não têm nada a ver uma com a outra”: de um lado, o direito à vida, que é inviolável; e, de outro, as dificuldades do parto e a perspectiva de que a criança morra logo em seguida. O direito à vida, lembra Fernandes, “é o pressuposto para o exercício de todos os outros direitos, inclusive para o direito ao bem-estar”, que costuma fundamentar os argumentos de quem defende a legalização do aborto.
Na origem dessa contradição que coloca o bem-estar acima do direito à vida, segundo ele, está a “ditadura dos afetos”, que “abre espaço para o império da irracionalidade” na sociedade atual. “Os afetos, por essência, são irracionais, e precisam ser catapultados por uma vontade boa, que, por sua vez, precisa ser iluminada por uma reta razão. Quando os afetos, a vontade e a razão estão bem coordenados, existe um domínio político, como o Aristóteles falava. Quando existe um império dos afetos, que é o que nós vivemos hoje, existe um domínio despótico. Os afetos passam a dominar a vontade, e a razão já não enxerga mais nada”, explica Fernandes.
O resultado disso, conclui ele, é que os afetos se tornam o principal critério para definir a moralidade das ações. “As coisas passam a ser morais se forem afetivamente boas. E passam a ser más se forem afetivamente ruins. Se você apaga a razão, alguém vai ter que definir o que é bom e o que é mau, e vão ser os afetos”, diz.
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