Originalmente, o roteiro do filme Guerra Mundial Z, de 2013, previa que o vírus que transformava as pessoas em zumbis tinha origem na China. A informação foi excluída para evitar atritos com o governo de Pequim e, quem sabe, garantir que a produção chegasse aos habitantes do país – a ditadura local seleciona com mão de ferro quais longas-metragens estrangeiros podem circular.
Não adiantou o esforço: Guerra Mundial Z foi barrado, assim como costuma acontecer com filmes estrelados por Brad Pitt desde que ele atuou em Sete Anos no Tibete, de 1997, cujo diretor Jean-Jacques Annaud, aliás, já declarou diversas vezes que não é defensor das causas do Dalai Lama.
De fato, irritar os chineses é mau negócio para Hollywood. Na mesma medida em que o governo de Pequim aumenta os investimentos em produções americanas e sustenta uma lista de critérios para garantir que as produções sejam vistas por seu povo, atores e diretores que se atrevem a questionar as ações dos comandantes do país asiático veem suas carreiras prejudicadas na Califórnia. Que o diga Richard Gere.
Mudanças propositais
Um dos mais requisitados galãs do cinema americano entre Gigolô Americano, de 1980, e Uma Linda Mulher, de 1990, hoje vive de filmes independentes. Começou a ter dificuldades para emplacar papéis em produções de grande porte depois que discursou contra o que chamou de “situação horrenda” no Tibete durante o Oscar de 1993.
A situação não mudou com o passar do tempo. “Há filmes em que eu não posso atuar porque os chineses diriam, ‘ele não’”, ele declarou ao Hollywood Reporter, em 2017. “Recentemente uma pessoa me disse que não poderia investir em um projeto meu porque assim irritaria os chineses”. A relação de proximidade com o Dalai Lama, que a tradição tibetana considera o legítimo líder da região, também dificultou a vida de Sharon Stone, Naomi Watts e Jim Carrey.
Essa pressão ajuda a entender a queda abrupta na repercussão dos eventos envolvendo o Dalai Lama, que tem 85 anos. Ele vive na Índia, mas há anos não é mais visto com atores e atrizes que participam das maiores produções cinematográficas de Hollywood – alguns permanecem fiéis à causa, incluindo Richard Gere e Sharon Stone, que também não participa de grandes produções há anos. Mas são casos isolados. Entre os filmes de grande orçamento, o que se vê com frequência são ajustes de linguagem, como o realizado por Guerra Mundial Z, ou elogios escancarados à China.
Em Gravidade, por exemplo, a personagem de Sandra Bullock é salva por uma estação espacial chinesa. A personagem que atua como mentora do Doutor Estranho, protagonista do filme homônimo de 2016, é britânica, e não tibetana, como nas HQs. A bandeira de Taiwan foi retirada da jaqueta do personagem de Tom Cruise em Top Gun: Maverick, a ser lançado em 2021.
Em muitos casos, os ajustes são bem recebidos pela ditadura local: uma série de filmes recentes de Hollywood foi visto por mais pessoas na China do que nos Estados Unidos, incluindo Homem-Aranha: Longe de Casa e Vingadores: Ultimato. Em 2019, os filmes americanos arrecadaram na China US$ 2,6 bilhões dos US$ 11,4 bilhões que a indústria de cinema dos Estados Unidos levantou no mundo todo. Em 2023, as bilheterias chinesas deverão ultrapassar a marca dos US$ 15 bilhões.
Aliás, não é apenas no universo do entretenimento que os chineses dão passos largos na direção de influenciar os americanos. Eles atuam em diversos outros ambientes, como a imprensa e as redes sociais, além dos esportes. O astro do basquete Lebron James, por exemplo, que utilizou o Twitter para criticar Donald Trump ao longo de todo o mandato do agora ex-presidente, mostrou-se conciliador quando, durante uma viagem de exibição para a China, em 2019, o CEO dos Houston Rockets, Daryl Morey, criticou as ações de Pequim contra Hong Kong.
“Sobre essa situação em particular, sinto que é algo que não só eu e meus colegas de time, mas também nossa organização, têm informação o suficiente para comentar”, disse Lebron, na época, ecoando um argumento muito utilizado pelos próprios chineses, o de que não é aceitável criticar as ações da ditadura asiática sem antes estudar profundamente a história do país.
Investimento com censura
Enquanto investem em produções dentro de seu próprio país, empresas chinesas aumentam a quantidade de dinheiro aplicada em produtoras e distribuidoras americanas. Ainda em 2016, por exemplo, a Sony Pictures Entertainment formou uma aliança com a Dalian Wanda, uma empresa chinesa que se tornou um dos maiores impérios midiáticos do mundo. O lobista Rick Berman vem tentando reagir ao que chama de “a dominação comunista do nosso cinema”.
“A população americana vem sendo submetida à censura em seus filmes, e é censura determinada pelo Partido Comunista da China”, afirmou o jornalista Mike Gonzales em entrevista para a Heritage Foundation, de Washington. “Os chineses não são negociadores justos. Se você quer ter a sorte de seus filmes serem escolhidos para exibição para uma plateia enorme, precisa submeter seu roteiro aos censores deles. Só vai ter sucesso se apresentar a China como um país democrático e benevolente, e não como a ditadura que é”.
De acordo com o relatório “Made in Hollywood, Censored in Beijing” (“Feito em Hollywood, Censurado em Pequim”), produzido pela organização PEN America, já é possível identificar sinais da forte influência chinesa na produção americana.
“O Partido Comunista Chinês está delineando o que a audiência global assiste”, afirma o texto. “Roteiristas e produtores são claramente orientados a não testar os limites dessa política, que consiste em uma ação massiva de propaganda em favor do Partido Comunista”. De acordo com o estudo, “o regime de Xi Jinping está comprometido em garantir que os produtores de Hollywood ‘contem a história da China direito’, para usar uma expressão recorrente em seus discursos”.
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