Em 1975, o então deputado Francelino Pereira (da ARENA), em tom de irresignação, fez uma pergunta que ficaria célebre: “Que país é esse?”
Ele assim reagia às escaramuças da oposição, a qual desdenhava a palavra do presidente Ernesto Geisel, que anunciava uma abertura do regime militar “lenta, gradual e segura”.
Três anos depois, o adolescente Renato Russo – que viria a ser um brilhante compositor e líder do grupo Legião Urbana – compôs um rock, como ele, adolescente, repetindo a frase de Francelino Pereira.
A música só foi gravada em 1987 por Legião Urbana, em cujos shows Renato Russo esbravejava:
“Que país é esse?!”
E plateias inflamadas respondiam:
“É a porra do Brasil!”
A pergunta segue em voga. Mas que haja irresignação!
“Que país é esse”, em que o Supremo Tribunal Federal (STF), que deveria zelar pela Constituição, é capaz de violar a própria Constituição?
O STF já proibiu operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro. Já mudou sua própria jurisprudência para opor-se à prisão de condenado na Operação Lava Jato. Isso e outras extravagâncias.
Mas o que dá a medida do drama brasileiro é um fato recente, uma tentativa de violação explícita que por pouco não se consumou. Fato que não pode ser esquecido, mas visto como sinal vermelho.
O pleno do STF foi instado a dizer se cabia ou não a reeleição dos atuais presidentes da Câmara e do Senado, o que está claramente proibido no art. 57, § 4º da Constituição Federal (CF).
A regra permite a reeleição, desde que o segundo mandato caia em nova legislatura. Só que, no caso examinado pelo STF, cairia na mesma legislatura, hipótese em que a reeleição é inelutavelmente proibida.
É uma norma troncha. Mas é o que manda a Constituição. E somente o “constituinte derivado” (o pessoalzinho do Congresso) pode alterar a CF.
O Supremo não tem legitimidade para mexer nisso. Tem, isto sim, a obrigação de fazer que a Carta Maior seja obedecida.
Porém, apesar da regra ser insofismável, a resposta do STF não foi unânime: cinco ministros tentaram quebrar o preceito constitucional.
Para a ministra Cármen Lúcia, permitir a reeleição teria sido descumprir “fragorosa e frontalmente” a Constituição.
Disse ela:
“Não há sequer duas opções” para interpretar o referido dispositivo. “A norma é clara, o português direto e objetivo”, afirmou.
Até a Folha de S. Paulo (ela mesma!) admitiu que Alcolumbre e Maia, os interessados no caso, apostavam na degeneração da CF em vista de “articulações políticas nos bastidores” [envolvendo o STF], de recentes “mudanças constitucionais” [esdrúxulas] e de que ambos ficam do lado do STF nos enfrentamentos de Jair Bolsonaro com o Supremo (título da Folha:
“STF avança em drible na Constituição”, 04/12/2020).
O ministro Marco Aurélio Mello fulminou o truque articulado e asseverou que não cabe julgar mediante “critério de plantão”.
Advertiu, ainda, que é inaceitável as Casas Legislativas mudarem a regra sobre o tema “conforme as conveniências reinantes, cada qual adotando um critério, ao bel-prazer, à luz de interesses momentâneos”.
Piruetas hermenêuticas para torcer a CF já viraram rotina. Mas, um caso assim tão desbragado ainda não tinha ocorrido, o que é mau presságio.
Os cinco votos pró-reeleição sinalizam o que de pior pode ocorrer no país, isto é, a extinção do aspecto mais elementar da democracia: “a segurança jurídica”.
Vale a questão: quem aceita que, nesse caso, o STF descumpra “fragorosa e frontalmente” a CF admite também que ele modifique o sentido do inciso I do art. 1º, que afirma a soberania do Estado Brasileiro?
Nada é mais grave no Brasil neste momento, pois, do que o abastardamento da Constituição praticado pelo órgão encarregado de resguardá-la. Agora, com o Senado e a Câmara oscilando entre a omissão e a falcatrua, como esperar que o STF vá recuar desse “modus faciendi”?
Mas a quem cabe, formalmente, fiscalizar o STF? Ora, essa é tarefa do Senado, que, nos últimos dois anos, foi manobrado por Davi Alcolumbre, que, em favor próprio, instiga a violação da CF.
Há, ainda, a omissão da Câmara dos deputados, que tem força (mas carece de honradez) para, em defesa da CF, virar qualquer jogo.
Percebem a engrenagem macabra dos poderes?
De nada adianta ficar de basbaque a perguntar: “que país é esse?” Não é com arroubos adolescentes que se faz uma nação.
É oportuno lembrar a advertência de Rui Barbosa:
“A pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.
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