Pandemia altera dinâmica do crime, mas grupos organizados não perdem força

Restrições impostas para conter o avanço da doença mudaram a rotina das cidades e os registros criminais. Especialistas ponderam que organizações criminosas estruturadas continuaram atuando

pandemia mudou tudo em 2020, inclusive o crime. As restrições que vigoraram ao longo do ano – como lockdowns, distanciamento social (em maior ou menor grau) e fechamento de fronteiras – trouxeram diferentes consequências sobre as dinâmicas criminais. A redução dos crimes patrimoniais, como roubos, e o aumento da preocupação sobre os registros de violência contra a mulher são alguns desses sinais. No meio de tudo isso, quem parece não ter perdido força foi o crime organizado praticado por grupos estruturados. 

Os primeiros efeitos da pandemia a serem notados sobre os registros criminais ocorreram com a queda nos crimes patrimoniais, notada a partir do primeiro semestre. Isso, explicam especialistas, tem relação direta com a menor circulação de pessoas, portanto menos vítimas suscetíveis a roubos de rua, por exemplo. Na outra ponta, ficando mais tempo em casa, e reforçando a vigilância, era esperada uma queda sobre os roubos a residências. Em São Paulo, este ano (de janeiro a outubro) teve 15% menos roubos na comparação com o mesmo período do ano passado. 

A dinâmica se repetiu para crimes de característica similar como furto e também contra outros tipos de alvo, como veículos (leia mais abaixo). Mas enquanto autoridades especulavam o impacto que a pandemia teria tido sobre a criminalidade, o Brasil assistiu a dois episódios em sequência que lembrou ao País a força do crime organizado. Em Criciúma, no dia 1º de dezembro, e em Cametá, no Pará, no dia 2 do mesmo mês, quadrilhas com dezenas de criminosos superarmados invadiram as cidades, dominaram as forças de segurança e impuseram com violência uma tática que, apesar de não ser inédita, continua a desafiar as autoridades. 

Esse cenário mostra, na análise de especialistas, que a pandemia teve diferentes efeitos sobre a ação de criminosos. A desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, descreve como tem observado o movimento da criminalidade neste ano. “O pequeno traficante que trabalha na biqueira e vende dez papelotes de droga… claro que para esses a pandemia tem um impacto, já que há menos pessoas na rua, o que contribui também para a atividade policial”, diz. “Isso vale também para aquele pequeno roubo ou furto, fruto de uma trombada na rua. Nesses casos, o ano também trouxe consequências”, acrescenta. 

Mas o cenário é diferente se forem observadas as estruturas criminosas mais complexas. “Os grandes negócios criminosos continuaram funcionando, continuaram organizados, seguiram lavando dinheiro. A pandemia não afetou tanto, como pudemos ver em Criciúma e no Pará. É ilusório achar que a pandemia mitigou essas organizações criminosas”, pontua, lembrando da capacidade de adaptação do crime e de atuar em cima da falha do Estado. O combate efetivo, reforça a magistrada, passa pela descapitalização desses grupos.

Quem tem atuado com ênfase na descapitalização das organizações é a Polícia Federal. O delegado Elvis Secco, coordenador de repressão a drogas e facções criminosas, calcula que as operações deflagradas neste ano resultaram no sequestro judicial de R$ 1,160 bilhão de bens do crime organizado, o que ele classifica como um recorde histórico. 

“No espaço de 60 dias, deflagramos dez operações policiais, todas de lavagem de dinheiro contra o tráfico internacional de drogas Essas dez operações foram responsáveis por (apreender) R$ 1 bilhão de patrimônio. Estou falando de bens, imóveis, iates, fazendas, de veículos que vão ser vendidos. Estou falando de metodologia de enfrentar o tráfico de drogas em que você busca a desarticulação financeira”, explicou ele durante evento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública neste mês. 

Secco participava de uma discussão sobre os efeitos da pandemia sobre o crime organizado e se valeu do mesmo argumento de Ivana. “Quando falamos em boca de fumo, podemos pensar que a pandemia gerou algum prejuízo, pelos lockdowns ou condições de restrição ou medo. Mas quando pensamos macro, a questão é muito mais embaixo”, reforça. 

“O grande líder de organização criminosa, aquele que na Operação Enterprise mantinha em depósito na garagem de um imóvel 12 milhões de euros, foi atingido pela pandemia? Ele sofreu com isso? Ele voava em jato de 20 milhões de dólares”, exemplificou, citando a operação deflagrada no fim de novembro e que chegou a bunkers do narcotráfico na Europa. 

Sobre os crimes que estão mais presentes no cotidiano da população, a preocupação é que os índices de roubo, por exemplo, retomem os patamares pré-pandemia assim que as condições de convivência forem sendo retomadas, como já ocorre pelo País em alguma medida. Com isso, as autoridades de segurança precisarão lidar com outros efeitos desse período, defende Túlio Kahn, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e consultor da Fundação Espaço Democrático. 

“Vai ser muito difícil manter esse baixo nível porque ele não foi fruto de uma política pública específica, ele se beneficiou da mudança na rotina. Agora, há de se prestar atenção em fatores como o desemprego e a evasão escolar, que podem desaguar em implicações na criminalidade”, diz. O cenário econômico ainda depende de decisões do governo federal sobre a continuidade do auxílio emergencial, por exemplo, e a evasão escolar pode ser um efeito da paralisação das aulas, cuja retomada ainda não foi implementada amplamente. 

O momento pandêmico, lembra Kahn, é oportuno para se observar os efeitos do comportamento da população em relação a regras impostas. Historicamente, os governos trabalham para que a população coopere mais e não cometa crimes, tendo como meio de repressão a polícia. Para ele, a capacidade de cooperação foi testada, de outra maneira, durante a pandemia. 

“Muitas medidas sanitárias dependiam mais da adesão voluntária a regras de convivência do que da fiscalização coercitiva. Os países que cumpriram melhor o isolamento social não fizeram isso porque tinham a melhor polícia, mas, sim, porque as pessoas obedeceram as regras. É uma questão de crença e legitimidade, de achar que é o correto a ser feito. Isso ajuda a explicar também o nível de criminalidade.” 

Entenda qual foi o impacto da pandemia em diferentes crimes

  1. Crimes patrimoniais: Registros como roubo e furto sofreram sensível queda diante das restrições de circulação nas cidades. Especialistas analisam que as oportunidades para tais crimes, com menos pessoas expostas, foram reduzidas. Autoridades esperam que os registros voltem a subir com a retomada das atividades.
  2. Violência contra a mulher: Crimes contra as mulheres demandam especial atenção durante a pandemia. Os dados não têm mostrado elevação nos registros de estupro, por exemplo, mas especialistas analisam que isso pode ter sido influenciado por uma maior dificuldade de denúncia. Comumente o agressor é conhecido da vítima e pode dividir o mesmo ambiente residencial. São incentivados métodos que facilitem a denúncia, como o registro pela internet. 
  3. Crime organizado e tráfico de drogas: Especialistas veem diferentes impactos a depender do grau da organização. Pequenos traficantes podem ter sofrido prejuízos diante da queda na demanda ou por dificuldade de deslocamento nas cidades. A situação muda quando a análise é feita para grandes organizações envolvidas em tráfico internacional de drogas. Com grande poder de capitalização, elas continuaram atuando, como demonstram operações recentes da Polícia Federal que flagraram essa atuação. 
  4. Homicídios: Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostraram que, no primeiro semestre, o País registrou 25.712 mortes violentas – 7,1% a mais em relação ao mesmo período do ano passado. O aumento é uma inversão de tendência na comparação com a queda recorde de 2019. A polícia tem apontado alta nos casos de assassinato que envolvem as relações interpessoais entre conhecidos, o que pode ser um efeito da pandemia. Os dados mais recentes ainda não estão disponíveis para análise. 

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