Dois cabos da Polícia Militar do Ceará repassavam equipamentos para outros militares; investigações apontam que um deles comprou equipamento de tráfico internacional
Era 21 de outubro de 2018 quando um cabo da Polícia Militar do Ceará pegava seu telefone para fazer uma chamada de reclamação. Do outro lado, em Guaratuba, no Paraná, sem saber que estava sendo interceptado pela Polícia Federal, o traficante internacional de armas e munições Paulo José Vasconcelos ouvia de forma atenta os questionamentos.
O cabo havia adquirido de Paulo Vasconcelos um kit roni por meio do site Mercado Livre. Embora o material ilegal de origem paraguaia tivesse chegado com toda a tranquilidade pelos Correios, o equipamento não estava funcionando. O kit roni é um produto de uso restrito controlado pelo Exército e transforma armas leves em longas; o militar o havia adquirido para usá-lo em uma arma de fogo real.
Durante o telefonema, Paulo se esforça para convencer o cabo a retirar uma reclamação feita no site do Mercado Livre. Ele diz que já vendeu o acessório a diversos clientes sem receber reclamações, inclusive do mesmo lote ao qual havia vendido ao policial. Eles continuam conversando sobre as falhas e calibres das armas de fogo nas quais o kit seria utilizado.
Foi nesse telefonema que o cabo da PM e outros 14 policiais militares cearenses entravam nos autos da Operação Mercado das Armas, da Polícia Federal. A investigação está em segredo de Justiça e descobriu um esquema de tráfico internacional de armas e munições, cuja teia comercial alcançava diversos estados como Rio Grande do Sul, Roraima, passando pela Bahia e, claro, pelo Ceará.
A operação foi deflagrada em 29 de julho deste ano, após a Justiça Federal autorizar 25 pedidos de busca e apreensão, entre os quais dois são contra PMs do Ceará. Os nomes dos alvos e dos demais militares que teriam negociado armas de fogo e munições de forma ilegal não serão divulgados em razão de os primeiros ainda constarem no inquérito como investigados. Eles não foram presos pela Polícia Federal.
Nas apurações, ficou constatado que os materiais eram comprados principalmente de uma loja no Paraguai, que é gerenciada por irmãos libaneses suspeitos de ligação com um grupo terrorista. Os equipamentos ilegais eram vendidos por meio do Mercado Livre e enviados pelos Correios. Além de policiais militares cearenses, as armas e munições foram destinadas a integrantes do Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, e a assaltantes de carros-fortes, em São Paulo.
Em nota, o Mercado Livre, repudiou o uso indevido de sua plataforma e disse que “tem todo interesse em excluir qualquer anúncio que fira os termos da legislação em vigor”. A empresa acrescentou que coopera com autoridades policiais e permite aos órgãos identificar e remover anúncios de produtos que considerem ilegais e também identificar os vendedores responsáveis.
Negociação
Por aqui, o cabo da PM teria negociado munições ou armamentos com, pelo menos, 12 policiais militares devidamente identificados pela Polícia Federal. Desta forma, ele passou para a condição de investigado na operação e foi considerado suspeito de comercializar e adquirir de forma ilegal armas de fogo e munições restritas. “Ressalto que, muito embora o comprador seja policial, o mesmo deve obedecer às regras para eventual compra do acessório, o que não foi seguido no caso”, diz trecho do relatório da PF.
Com isso, o cabo passou a ter suas conversas também interceptadas por autorização judicial e, nelas, apesar de sempre indicar que as tratativas da venda de acessórios armamentícios sejam feitas pelo aplicativo WhatsApp, a Polícia Federal conseguiu identificar suspeitas de práticas criminosas. Em uma conversa com outro cabo da PM cearense, eles debatem como a venda pode ser feita. Em outra ligação, realizada no dia 11 de março de 2019, cuja transcrição consta nos autos da Operação Mercado das Armas, um homem não identificado pela PF pergunta sobre armamentos ao cabo.
‘Só no final do mês’
“Cadê a minha .40, a minha glock?”, pergunta a pessoa não identificada, ao que o militar responde: “só no final do mês”. Mais à frente na conversa, o homem questiona se está faltando espoleta (um composto químico utilizado para iniciar a combustão em uma munição). O cabo responde: “É que eu peguei, eu encomendei umas importadas, que a CBC costuma dar umas falhazinhas, né?”. A Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) é uma das organizações autorizadas formalmente a produzir munições no Brasil.
Em outro diálogo, o cabo afirma ver a possibilidade de revender 3 mil munições a um homem não identificado. Segundo a PF, o militar realizou a importação de insumos para a produção da munição que posteriormente iria comercializar. Com relação aos demais militares envolvidos, conforme os investigadores, os dados sobre eles devem “ser compartilhados com a Corregedoria Militar do Ceará”.
A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou que as investigações estão sob responsabilidade da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) e que a Polícia Militar do Ceará não instaura procedimentos administrativos de apuração quando o crime não é militar.
A CGD ressaltou, em nota, que “tão logo tomou conhecimento” sobre o esquema, “determinou instauração de procedimento investigatório para apuração”. “A Controladoria trabalha, internamente, em apuração concomitante à da PF com o objetivo de esclarecer os fatos na seara administrativa”, escreveu. A Pasta, contudo, não especificou quando recebeu o inquérito da Polícia Federal e se os PMs envolvidos no esquema foram ou não afastados das suas funções na Corporação.
Efeito dominó
Ao terem acesso garantido pela Justiça às chamadas do cabo da PM, os investigadores passaram a analisar também as ações do outro cabo. Ambos caíram em uma interceptação na qual comentam a venda de armas de fogo de forma irregular. O primeiro diz ter vendido uma pistola Glock calibre 380 por R$ 8 mil e estar negociando outra do mesmo modelo por R$ 10 mil.
Com a quebra de sigilo telemático do segundo, foram encontradas fotografias de fuzis, pistolas e revólveres. Um desses armamentos, conforme aponta a apuração, tinha numeração aparente, a qual não consta no banco de dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal. O fato indica que a pistola seja fruto de comércio ilegal. O segundo cabo teria revendido armas e munições a, pelo menos, dois policiais militares, sendo um tenente-coronel e um sargento. Os três já foram instrutores da Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará (Aesp), facilitando disciplinas como tiro policial defensivo. O tenente coronel também ministrou disciplinas, como especialista, sobre armas e munições letais e menos letais. A SSPDS informou que os PMs instrutores não facilitam disciplinas desde 2018.
Nas interceptações, os investigados comentam que o valor de uma caixa de munições gold seria R$ 550, cujo pagamento ocorreria por transferência bancária. Quando o segundo cabo e o tenente-coronel caem nas escutas, o oficial pede que o praça venda um revólver que está sob sua posse. A arma custaria entre R$ 2,5 e R$ 3 mil. Em outra ligação, o cabo confirma a venda de munições a um homem não identificado.
Respostas
O Ministério Público Federal no Paraná informou que os dois cabos da PM ainda não foram denunciados. “Estão na condição de ‘investigados’. Após a conclusão da investigação, o MPF vai decidir se denuncia ou não”, disse. A Polícia Federal no Paraná foi procurada pela reportagem, mas não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Os Correios afirmaram que “trabalham em parceria com os órgãos de segurança pública para prevenir o tráfego de itens proibidos por meio do sistema postal”. A empresa ressaltou que o “encaminhamento de armas via postal é controlado pelo Exército” e, quando um objeto proibido é detectado, os órgãos competentes são acionados. “Na ocorrência de postagens em desacordo com a legislação, os objetos são retidos no fluxo postal e apreendidos pelo órgão controlador”, completou.
O Exército Brasileiro informou que tem poder de fiscalização do comércio legal de armas e acessórios e que “tem realizado apreensões desse tipo de material controlado”, como o kit roni. Conforme as Forças Armadas, o equipamento é de uso restrito e isso ocorre “pelo fato de o mesmo trazer potencial perigo à segurança e à tranquilidade pública, além de poder ser utilizado em armas de fogo”.
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