Nesta segunda-feira, a Congregação para a Doutrina da Fé, o “braço doutrinal” do Vaticano, divulgou um documento, com autorização expressa do papa Francisco, reafirmando tudo aquilo que já vínhamos dizendo aqui sobre o uso de vacinas contra a Covid-19 desenvolvidas por meio do uso de linhagens celulares oriundas de fetos abortados. Aqui no blog já explicamos como esse tipo de vacina é feito e também mostramos como tem havido grupos católicos defendendo uma posição mais rigorista a respeito do tema.
O documento ainda não tem tradução oficial em português; no site do Vaticano você pode ler a Nota sobre a moralidade do uso de algumas vacinas contra a Covid-19 em italiano, em inglês e em espanhol. A novidade do documento é meramente a aplicação dos mesmos princípios éticos presentes em outros textos (como as Reflexões morais da Pontifícia Academia para a Vida de 2005; a Dignitas Personae, de 2008; e a nota conjunta da PAV e da conferência episcopal italiana de 2017) ao caso específico do coronavírus – o documento de 2005, por exemplo, apesar de lançar princípios éticos aplicáveis a qualquer vacina, demonstrava uma preocupação especial com o caso da rubéola congênita.
Em resumo, o que o Vaticano está dizendo? Em primeiro lugar, não se pretende fazer nenhum tipo de avaliação sobre segurança ou eficácia das vacinas; o documento trata especificamente do uso das linhagens celulares de fetos abortados em algumas delas. E, neste sentido, o item mais importante da nota é o 2: “quando vacinas contra a Covid-19 eticamente produzidas não estiverem disponíveis (por exemplo, em países onde vacinas sem problemas éticos não estão disponíveis para médicos e pacientes, ou onde sua distribuição seja mais difícil por exigir condições diferenciadas de transporte e armazenagem, ou quando vários tipos de vacinas estão disponíveis no mesmo país, mas as autoridades impedem que os cidadãos escolham com qual vacina querem ser inoculados), é moralmente aceitável receber uma vacina contra Covid-19 que usou linhagens celulares de fetos abortados em seus processos de pesquisa e produção”. O destaque está no texto original. E uma observação importante: “moralmente aceitável” não quer dizer obrigatório: o católico continua a ter o direito à objeção de consciência, podendo se recusar a tomar essas vacinas caso elas sejam a única opção disponível.
“Quando vacinas contra a Covid-19 eticamente produzidas não estiverem disponíveis (…), é moralmente aceitável receber uma vacina contra Covid-19 que usou linhagens celulares de fetos abortados em seus processos de pesquisa e produção.”
Nota sobre a moralidade do uso de algumas vacinas contra a Covid-19, documento da Congregação para a Doutrina da Fé divulgado nesta segunda-feira.
É interessante ver que o Vaticano reconhece, por exemplo, algumas dificuldades logísticas envolvidas na aplicação de vacinas de RNA mensageiro como a da Pfizer/BioNTech e da Moderna, que precisam ser mantidas em temperaturas baixíssimas que exigem refrigeradores especiais. Na lista de vacinas “morais” e “imorais” da organização Children of God for Life, a vacina da Moderna está na coluna vermelha por usar a linhagem HEK-293; a da Pfizer está na coluna das vacinas aceitáveis, com a ressalva de que ela provavelmente foi testada na linhagem HEK-293. No caso brasileiro, também há ali uma observação interessante: como provavelmente as clínicas privadas ficarão em último lugar no recebimento de vacinas, teremos de nos virar com o que os governos oferecerem, e aí pode ser que não tenhamos muita escolha, dependendo do estado ou da cidade onde vivermos.
Ah, mas e se houver a possibilidade de escolher? Então sim, a obrigação do católico é buscar a vacina que não usou as linhagens celulares de fetos abortados na sua produção. Isso não está explicitamente dito na nota divulgada hoje, mas fica subentendido; além disso, essa exigência aparece com todas as letras no texto de 2005: “Médicos e pais de família têm a obrigação de recorrer a vacinas alternativas (se elas existirem)”.
Agora, o que o documento do Vaticano não está dizendo? Certamente não está endossando o uso dessas vacinas; está apenas tolerando-o no momento atual. Liberar seu uso nestas condições específicas não equivale a aprovar seus métodos de produção; continua a haver a chamada “cooperação com o mal” – no caso, o mal realizado quando houve o aborto das crianças cujas células foram usadas no desenvolvimento das linhagens que a indústria farmacêutica usa hoje. E o documento é muito claro quando afirma que os laboratórios que fabricam e vendem tais vacinas, e os governos que as adquirem e distribuem, têm uma responsabilidade moral (e, portanto, um grau de “cooperação com o mal”) bem maior que a do cidadão que recorre a esses imunizantes. Tanto indústria farmacêutica quanto governos têm a obrigação moral de providenciar alternativas produzidas de forma ética.
E quanto aos pacientes? Como explica o texto do Vaticano, a cooperação nesses casos é material (não intencional) e mediata (indireta), mas muito remota. “O dever moral de evitar tal cooperação material passiva não é obrigatório se há um grave risco, como o da difusão (que de outra forma seria incontrolável) de um agente patológico perigoso – neste caso, o avanço pandêmico do Sars-CoV-2, que causa a Covid-19”, diz o documento. Mas o texto faz uma ressalva importante: “o uso moralmente lícito desse tipo de vacinas, nas condições particulares que o tornam possível, não constitui em si mesmo uma legitimação, mesmo indireta, da prática do aborto, e necessariamente pressupõem a oposição a essa prática da parte de quem usa essas vacinas”.
Por fim, o documento apresenta uma reflexão interessante sobre o ato de se vacinar. Do ponto de vista ético, não é uma decisão que afeta apenas o indivíduo, mas que tem consequências sobre o bem comum. “Na ausência de outros meios de frear ou prevenir a epidemia, o bem comum recomenda a vacinação, especialmente para proteger os mais fracos e vulneráveis. Entretanto, aqueles que, por motivos de consciência, recusarem as vacinas produzidas com linhagens celulares de fetos abortados, precisam fazer o máximo, por outros meios de prevenção e pelo comportamento adequado, para que não se tornem meios de transmissão do agente infeccioso. Em particular, devem evitar representar qualquer risco à saúde daqueles que não podem ser vacinados por razões médicas ou outros motivos, e que são os mais vulneráveis”, diz a nota.
É por isso que falácias de internet do tipo “se você vai se vacinar, por que tem medo caso eu não me vacine?” são furadas. Não é comigo, vacinado, que eu estou preocupado caso você, podendo se vacinar, não o faça; é com todos aqueles com quem você vai entrar em contato e que não podem (ainda que queiram) ser vacinados. Infelizmente, temo que isso acabe ignorado por quem mais precisa ouvir esse tipo de argumento: aqueles que, como disse o papa Francisco na Fratelli Tutti, negam as ideias de “sociedade” e “bem comum”, enxergando apenas o indivíduo, esquecendo-se da Doutrina Social da Igreja para se tornarem devotos de Santa Ayn Rand.
Cooperação com o aborto não é o único dilema bioético importante das vacinas contra a Covid-19, diz padre
Para o padre Hélio Luciano de Oliveira, mestre em Bioética, doutor em Teologia (também com ênfase em bioética) e professor da Universidade de Navarra, na Espanha, a questão da moralidade do uso de vacinas que empregaram linhagens celulares de fetos abortados já está resolvida pelo Magistério da Igreja. “O que não quer dizer que devamos nos desinteressar do problema”, acrescenta, em linha com os documentos que pedem uma postura ativa dos católicos na pressão para que a indústria farmacêutica deixe de usar esse recurso na produção de vacinas e medicamentos. O problema específico que ele enxerga na produção das vacinas contra a Covid-19 é outro, também de ordem bioética, mas cuja discussão não foi a intenção do documento divulgado esta segunda-feira pelo Vaticano: “eu apoio a busca pela vacina, mas na minha opinião há uma série de erros na aprovação forçada de algumas delas, e até mesmo uma mentalidade utilitarista/consequencialista de fundo”, diz o sacerdote.
Essa mentalidade, segundo o padre Hélio Luciano, está na tentativa de minimizar ou ignorar os possíveis efeitos colaterais das vacinas. “Está se aceitando a morte de uns pelo benefício de outros. Os protocolos internacionais para aprovação de um medicamento são rigorosos para garantir a saúde e o non nocere [“não fazer dano”] essenciais à prática médica. Saltar algumas dessas etapas considerando que morrerão menos pessoas pelas consequências da vacina do que pelo próprio vírus não me parece uma opção moral correta, mas sim um utilitarismo, que consiste em buscar a ‘felicidade’ para o maior número de pessoas”, afirma. “A fase 3, que é a aplicação da vacina em um número maior de pessoas, e quando de fato aparecem os efeitos colaterais, foi suspensa ou reduzida para quase todas as vacinas que já tinham eficácia comprovada no início da fase 3 ou final da fase 2. Assim se assegura a eficácia, mas não o non nocere, que é princípio essencial da prática médica. Passamos quase diretamente da fase 2 à fase 4 (de distribuição ampla), ou de uma ‘fase 3 precoce’ a uma fase 4. E os critérios que justificaram essa exceção foram, na minha opinião, utilitaristas”, acrescenta.
De fato, talvez este seja o grande problema bioético não resolvido das vacinas contra a Covid-19 (a questão dos fetos abortados é, sim, um grande problema bioético, mas resolvido). Infelizmente, a era das mídias sociais não vai ajudar muito a termos uma reflexão serena porque, além da tendência já mencionada a minimizar ou ignorar os efeitos colaterais, existe o movimento contrário, de se atribuir qualquer dorzinha futura à vacina mesmo antes que haja qualquer investigação séria a respeito. As fake news a esse respeito já estão correndo a todo vapor: lembram, por exemplo, da enfermeira que desmaiou na frente das câmeras depois de tomar a vacina? Não, ela não morreu – e, dado o histórico clínico dela, muito provavelmente o desmaio nem foi causado pela vacina. Nesse turbilhão, será muito difícil separar logo de cara o que é mentira pura, o que é alarmismo, o que é tentativa de jogar a sujeira para debaixo do tapete e o que é a transparência necessária nestes casos.
Marcio Antonio Campos
Marcio Antonio Campos é jornalista e está na Gazeta do Povo desde 2004. Já trabalhou nas editorias de Paraná, Vestibular, Vida e Cidadania, e Economia; atualmente é editor de Opinião. Trouxe de casa o interesse tanto pela ciência quanto pela religião, e é coautor de Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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