Um soco no estômago: 3 de cada 4 vítimas de estupro na pandemia são crianças

Precisamos nos preparar para acolher as vítimas, mostra levantamento do Unicef, MPSP e Instituto Sou da Paz.

Quem já passou pelo sistema de proteção à infância no Brasil sabe bem que as maravilhas escritas no papel são direitos que só existem na imaginação. Vivemos uma espécie de corredor da morte das crianças inocentes, formado por omissão em cima de omissão. Não é culpa apenas do sistema, de agentes públicos ou de famílias desfuncionais. Nos falta admitir que esse câncer existe na nossa sociedade e começar o tratamento para, pelo menos, evitar a metástase.

Relatório feito em conjunto pelo Unicef, Ministério Público do Estado de São Paulo e Instituto Sou da Paz traz um quadro que tem o efeito de um meteoro. Os estupros de crianças vêm aumentando ano a ano e tiveram um pico na pandemia. Hoje, de cada 4 estupros registrados no Estado, 3 têm como vítimas menores de 14 anos de idade. Enquanto isso, nossas autoridades estão preocupadas em liberar bebida em botequim depois das 20h. Não há justificativa.

No início desta semana, o Unicef mais uma vez emitiu um alerta sobre o erro em ainda considerar o fechamento de escolas como alternativa de combate ao coronavírus. Nós nunca vimos um avanço científico tão fantástico no conhecimento de uma doença. Era natural pensar nisso quando nada sabíamos sobre o vírus, no início do ano. Agora, depois de tudo o que a ciência descobriu, somente os países sistematicamente desleixados com a infância insistem nessa política. O Brasil é um deles, felizmente uma minoria no mundo. Hoje, 20% das salas de aula estão fechadas no mundo e não há notícia de outro país que não tenha uma diretriz nacional sobre o tema.

Há os que justificam a apatia e falta de liderança do governo federal com um julgamento do STF em que, supostamente, o presidente da República teria se tornado a rainha da Inglaterra. Cada um conviva com sua própria fantasia, os documentos são públicos e mostram que essa história é como vários dos supostos fenômenos paranormais que o saudoso Padre Quevedo analisava na televisão: “non ecziste”. O que existe é uma chaga social em que coletivamente aceitamos que todas as questões sejam colocadas à frente da infância no Brasil, é o segredo mais público da nossa ruína moral.

Tratamos crianças como objetos à serviço do capricho de quem seja dono delas, ora os adultos, ora o Estado, a depender do gosto ideológico do freguês. Não se preocupe, não há a menor dúvida de que isso termina em tragédia e compromete as gerações futuras. Crianças são seres humanos únicos, iguais a nós em dignidade e que, pela fragilidade física e emocional temos obrigação de priorizar enquanto sociedade e enquanto cidadãos. Falhamos tanto nisso que chegamos à barbárie: 75% das vítimas de estupro são crianças.

Pense em tudo o que aconteceu durante a pandemia. A prioridade obrigatória dos interesses das crianças e a obrigação de todos de proteger a infância foi jogada na latrina na primeira oportunidade. É inacreditável que até agora os professores não estejam entre os grupos prioritários para receber as vacinas. Quer dizer, seria inacreditável. Um país que sequer discutiu onde ficariam as crianças quando se botou a maioria dos adultos de volta ao trabalho aceita esse tipo de coisa. Precisamos parar de aceitar.

O Brasil tem uma vocação inabalável para o curandeirismo. Atualmente, é curioso, as crendices e simpatias se dividem por grupo ideológico. De um lado estão os defensores de remédio inócuo e criadores de teoria conspiratória sobre vacina. Do outro lado estão os defensores apaixonados de escola fechada e do uso de máscara durante os exercícios físicos. Dane-se a ciência, né? No fim, a gente toma um chá de boldo, faz uma simpatia receitada pela vizinha e segue em frente.

Há alguns dias, a Gazeta do Povo divulgou estudo feito com 191 países sobre o efeito da abertura ou fechamento de escolas sobre a gravidade da pandemia de COVID. Adivinha? Não muda nada. São dados, simples assim. Escola aberta ou fechada não fazem diferença na pandemia. Adivinha onde fazem diferença? No aprendizado, bem estar, saúde mental e até segurança física das crianças. As crianças já estão pagando a conta mas, infelizmente, têm menos voz do que marmanjo desesperado porque não pode beber na rua depois das 8 da noite.

Apenas em 8% dos casos contabilizados pelo estudo se sabe algo mais sobre a relação entre o estuprador e a criança que foi vítima. Vivemos, durante a pandemia, uma situação inédita. Os pais foram aos poucos voltando ao trabalho presencial enquanto as escolas permaneciam fechadas. Até onde eu sei, não tem como dar pause na criança e deixar desligada até o final do expediente. O chamado “estupro de vulnerável”, aquele em que a violência é presumida porque a vítima é menor de 14 anos, só passou a ser contabilizado de forma separada em São Paulo a partir de 2016.

Assim que a pandemia começou, os registros de praticamente todos os crimes caíram muito. Isso se deve a dois fatores:
1. A restrição de circulação e mudança de regras de convivência alterou o panorama da criminalidade.
2. O registro dos crimes e o acesso a redes de proteção ficou mais difícil para parte das vítimas.

No caso de estupros, em março e abril todas as ocorrências caíram muito. Os casos represados começaram a chegar nos meses subsequentes. A recomendação do relatório é para que as autoridades se preparem porque ainda teremos muito mais registros referentes a meses anteriores.

“É preciso ressalvar que um volume razoável de crimes ocorridos nos meses recentes tendem a ser comunicados a partir de julho (cerca de 26% dos crimes ocorridos nos meses de janeiro a junho de 2019 foram registrados a partir do mês seguinte ao mês do fato e ao longo do segundo semestre)”, aponta o relatório, que também ressalta: “A análise semestral indica o aumento da proporção de ocorrências em residência em relação ao universo total, a despeito da diminuição do número de boletins registrados, e sinaliza para a maior vulnerabilidade das vítimas durante o isolamento social em 2020. Em quaisquer recortes que se faça, seja considerando a data da ocorrência ou da comunicação do crime, chama a atenção que, proporcionalmente, a vitimização dentro das residências sofre aumento no primeiro semestre de 2020 em comparação ao mesmo período nos anos anteriores, distinguindo da tendência antes observada (Gráfico 15 e Gráfico 17)”.

Um dado absolutamente chocante do relatório é que 8 em cada 10 estupros de criança ocorrem na casa da criança. Na maioria dos casos, o criminoso é alguém da família e a proporção aumentou durante a pandemia. Antes, eram por volta de 65% os casos de estupro de criança por parente, agora estamos em quase 75%. As meninas, sobretudo entre 11 e 13 anos de idade são as vítimas preferenciais. No entanto, há meninos que são vítimas e crimes registrados até em bebês. Pessoas com deficiência intelectual, principalmente idosos, também fazem parte da estatística das vítimas.

“É crucial, portanto, que as instituições do sistema de garantia de direitos se preparem para atender às vítimas mantidas ocultas pela pandemia. Na medida em que a circulação pelas cidades voltar progressivamente ao normal, e que as escolas e outros serviços reabram para atendimento presencial, precisamos estar prontos para um primeiro momento difícil, em que tudo acumulado e mal resolvido dos últimos meses transborde de uma vez. Os serviços têm que estar mais atentos, os funcionários preparados, informados e treinados para lidar com um número possivelmente maior de casos”, recomenda o relatório.

Nós gostamos de dizer que não temos tolerância com violência sexual e, quando a vítima é criança, o caso geralmente provoca cólera nas pessoas. Realmente acredito nesses valores individualmente e no caráter hipotético. Ocorre que, por algum motivo, estupradores de criança são espancados nas redes sociais mas convivem tranquilamente conosco. O tema é utilizado para inflamar pessoas e formar grupos políticos mas, é inegável, as atitudes práticas estão muito aquém do desejado.

Estupro de criança deixa marcas eternas na vítima, em seu círculo familiar e em todo seu círculo de amigos. Já tinhamos mais de um caso por hora em São Paulo antes da pandemia. Não são números, são tragédias humanas muitas vezes irreconciliáveis. Discursos apaixonados, soluções mágicas e bravatas são tão abundantes quanto inúteis na nossa sociedade. Precisamos urgentemente reconhecer que essa chaga existe e nos portar como adultos. Chega de pensamento mágico e boas intenções, precisamos reverter esse processo urgentemente.

Foto de perfil de Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher.

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