No último dia dois de dezembro faleceu Valéry Giscard d’Estaing, ex-presidente da França. Aos 94 anos de idade, era o mais velho ex-presidente francês. Faleceu em Paris, vítima de complicações da Covid-19, e sua família disse que deseja um funeral íntimo. As próprias medidas sanitárias contra a pandemia do novo coronavírus tornam um funeral de Estado um dilema. Além de ter sido o chefe de Estado francês, alguns outros aspectos da trajetória de sua vida certamente merecem nota e reflexão.
Caso o leitor nunca tenha ouvido falar dele antes, não se culpe. É possível que, salvo obrigações profissionais, o nome fosse pouco conhecido para a coluna também. Giscard governou a França por apenas um mandato, de 1974 a 1981, quando o presidente ainda era eleito para sete anos. Foi sucedido, e eclipsado, por catorze anos de François Mitterrand e doze anos de Jacques Chirac. Os dois, inclusive, foram seus “inimigos íntimos”. Relações cordiais e respeitosas, mas, ainda assim, oponentes nas urnas e na política.
Seu recorde de longevidade se explica pelo fato de ter sido um dos mais jovens mandatários franceses, eleito aos 48 anos de idade, derrotando Mitterrand por uma diferença de 400 mil votos, menos de 1% dos votos válidos totais. Sua carreira pública remontava aos anos 1960 e, por quase dez anos não consecutivos, ele foi Ministro da Economia do país, sob as presidências de Georges Pompidou e do herói nacional Charles de Gaulle. E aqui temos um exemplo de sua trajetória.
Privilégios exorbitantes
Uma frase comumente atribuída a de Gaulle foi, na verdade, de Giscard. Ao criticar o sistema econômico de Bretton Woods e o estabelecimento da convertibilidade do dólar com o ouro, Giscard, em nome do governo francês, disse que o sistema fornecia “privilégios exorbitantes” para os EUA, como centro da economia mundial. Parece mera citação, mas a crítica foi acompanhada da retirada das reservas francesas de ouro nos EUA, exemplo seguido por vários outros países.
Como consequência, o então presidente dos EUA Richard Nixon impôs o “Nixon Shock”, abrindo caminho para a transformação do dólar em moeda fiduciária. Junto com os Choques do Petróleo, isso significou crise nos anos 1970 e início dos anos 1980, inflação e rearranjo do comércio mundial. Empresas intensificaram a migração para locais onde seria mais barato produzir e a América Latina, com suas ditaduras que contraíram empréstimos em dólar, agora estava profundamente endividada e sofrendo com inflação.
Claro, não é apenas a passagem de Giscard como Ministro da Economia francesa que vai explicar os diversos planos monetários brasileiros para lidar com a hiperinflação, mas, quando ele apontou o dedo para os “privilégios exorbitantes” do dólar, foi o início de um deslocamento tectônico. Visto como um ministro bem-sucedido e prestigiado, que capitaneou a França por um terço dos Trente Glorieuses, os Trinta Anos Gloriosos da reconstrução, ele foi do ministério para a presidência.
Foto de arquivo tirada em 24 de junho de 1973 mostra o então Ministro das Finanças e candidato à presidência Valery Giscard d’Estaing e a acordeonista Yvette Horner tocando acordeão em Montmorency, durante o segundo festival mundial de acordeão | Foto: DANIEL JANIN/AFP| AFP
Giscard foi eleito pelo partido Republicanos, de centro-direita. Na verdade, ele foi um dos idealizadores do partido, com a ideia de ser uma direita distante do populismo e do nacionalismo. Para alguns, inclusive, ele foi um “traidor”, já que não se opôs à medidas socialmente liberais, como divórcio e, principalmente, a lei que regulamentou o aborto de gestação na França, em 1975, a primeira da Europa ocidental. Internamente, seu governo também manteve a abordagem de modernizar a infraestrutura francesa.
Unidade europeia
Notadamente, o estabelecimento das linhas ferroviárias rápidas, os “trem bala”, e a migração da matriz energética francesa para uma matriz nuclear. A França é, de longe, o país que proporcionalmente mais utiliza a energia nuclear, e só possui menos reatores do que os EUA, em um território muito menor. No campo exterior, Giscard estabeleceu uma boa relação com o então chanceler da Alemanha, Helmut Schmidt. Ambos plantaram algumas das sementes de uma maior cooperação entre os países europeus.
- Nesta foto de arquivo tirada em 19 de julho de 1977, o chanceler alemão Helmut Schmidt (E) se encontra com o então presidente francês Valery Giscard d’Estaing no aeroporto de Estrasburgo | Foto: AFP
- Foto tirada em 01 de abril de 1976: o presidente francês Valery Giscard d’Estaing (D) e o chanceler alemão Helmut Schmidt participaram da Cúpula Europeia em Luxemburgo | Foto: AFP
Embora sejam o sucessor do alemão, outro Helmut, o Kohl, junto ao sucessor de Giscard, Mitterrand, que recebem os créditos de “criadores da União Europeia”, com justiça, diga-se, o processo de maior integração foi intensificado no início ao final da década de 1970. Um contexto fortemente influenciado pela crise do período, já citada. No século XXI, Giscard presidiu a convenção que redigiu uma proposta de constituição europeia. Curiosamente, rejeitada pela população francesa em referendo.
Giscard tinha argumentos parecidos com o de seu antecessor de Gaulle. Uma Europa unida não seria refém do conflito entre EUA e União Soviética, tendo mais poder econômico e político, e uma Europa unida evitaria novos conflitos internos ao continente. Esse argumento é comprovado na realidade, já que as quase oito décadas desde a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço representam o mais estável e pacífico período da História europeia.
As guerras mundiais
Nesse espírito, ele foi laureado com o Prêmio Carlos Magno, da cidade de Aachen, que reconhece “esforços excepcionais” pela integração europeia. E existe uma curiosidade do destino nisso, já que Giscard nasceu na Alemanha, em Koblenz, em 1926. Seu pai trabalhava na administração francesa da ocupação da Renânia, estabelecida após a Grande Guerra como medida defensiva para estabelecer uma fronteira desmilitarizada e com menor presença do Estado alemão.
Um presidente francês nascido na Alemanha serve de ótimo símbolo para a unificação europeia, cuja gênese está na superação da divisão das duas margens do Reno. E, falando em conflitos, uma última nota sobre Giscard. Agora restam cada vez menos integrantes da resistência francesa contra a ocupação nazista. Em 1943, então com 17 anos de idade, Giscard se juntou aos guerrilheiros e participou das operações clandestinas para a libertação de Paris.
Posteriormente, se alistou no exército da França Livre, comandado por de Gaulle. Por seu serviço militar em uma unidade blindada no comando do general Jean de Tassigny, ele foi laureado com a Croix de Guerre, a terceira mais alta honraria exclusivamente militar francesa. Acima dela estão a Legião de Honra e a medalha de la Libération, concedida para apenas 1038 indivíduos. Desses, apenas dois ainda estão vivos, testemunhas de um passado não tão distante que Giscard presenciou.
Filipe Figueiredo
Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, professor de política internacional, roteirista do canal Nerdologia e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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