No domingo (29), Z. não acordou para votar. Tampouco acordou para ver o céu muito azul, com aquelas nuvens craqueladas que dão ao firmamento um ar Renascentista. Z. não acompanhou a apuração, não tripudiou sobre os derrotados, não celebrou vitórias de Pirro, não leu a análise acertadíssima de alguém no Twitter. Z. não fez nada disso, porque no sábado à noite se ocupou do maior problema filosófico do nosso tempo. E a ele sucumbiu.
Era um homem muito inteligente, Z. Talvez fosse inteligente demais. Jordan Peterson, que era para ser o tema do texto de hoje e talvez até reapareça nos parágrafos seguintes, fala muito bem sobre isso em seu “12 Regras para a Vida”. É mesmo tentador, do ponto de vida individual e da espécie, dar ouvidos demais ao órgão mais arrogante que temos: o cérebro. Depressão & Iluminismo formam uma combinação esdrúxula e talvez um bom nome de dupla sertaneja, além de serem sinais evidentes da doença física, espiritual e histórica causada pela soberba de nossas sinapses.
Mas como convencer o cérebro de que ele tem limitações? Uma delas, por sinal, é não conseguir imaginar um mundo sem nossa presença. É por isso que inventamos almas penadas, gasparzinhos e até anjos. É a forma que o cérebro encontrou para observar um mundo do qual ele só faz parte tangencialmente. Há outras coisas que o cérebro não consegue conceber. O próprio sentido da vida. Daí porque só os tolos buscam explicação para essas tragédias.
Veja se não é este o caso. No desespero de se livrar das agruras da vida, Z. disse “pra mim chega”. E chegou. Assim acreditava ele que a morte é uma espécie de monastério onde os espíritos fazem voto eterno de silêncio. Mas, por acaso ou milagre, você decide, eis que Z., contra sua vontade, está presente aqui, em cada um desses parágrafos, e por consequência na mente das dezessete pessoas que estão lendo este texto.
Arroz por cima do feijão
A vida vai muito além daquilo que consideramos vida. Muito além das infindáveis discussões nas redes sociais, daquele texto revoltante que você refutou tão bem com um meme, das eleições, das preferências estéticas, da crença ou descrença no progresso. Muito além das injustiças, da falta de oportunidades, da sabotagem das pessoas próximas, da sensação de inequívoca solidão. A vida vai muito além de tudo o que cabe num parágrafo, por mais bem construído que ele seja.
Eis uns dos temas, aliás, da minha última conversa com Z. Conversávamos sobre a politização de tudo. Falávamos de literatura, porque era a paixão que nos unia, mas a conversa transbordou para outros campos. Nem tudo é vitória ou derrota, esmagamento do adversário ou pedido de clemência. Nem tudo é ver prevalecer sua vontade sobre os demais. Z. me dizia que sonhava com o mundo assim e assado e eu, vestindo a barba branca e comprida de uma sapiência passageira, lhe dizia que nossos cérebros compõem paraísos sem espaço para o contraditório. E que graça tem a vida sem aqueles que põem o arroz por cima do feijão?
Não que minhas palavras de um lustro atrás fossem fazer qualquer diferença. E, no mais, agora é tarde.
O que me obriga novamente a citar Jordan Peterson, cuja mensagem de responsabilidade pessoal e submissão ao acaso soa tão ofensiva hoje em dia. Pois na semana passada a editora Penguin Random House anunciou a publicação de mais um livro de Peterson, com mais “regras” para uma juventude que precisa ouvir coisas óbvias como “antes de querer arrumar o mundo, arrume a cama” ou “se encontrar um gato enquanto estiver atravessando a rua, pare para acariciá-lo”.
Seje hómi
A notícia foi recebida com algum entusiasmo por leitores como eu. E com choro e gritaria pelos funcionários da editora, revoltados com a publicação de um autor que eles consideram fascista, transfóbico e divulgador de ideias reacionárias, que talvez combinassem com um mundo pré-1968, mas hoje não mais. Para essas pessoas, a simples existência de ideias que contradigam seu discurso, sua narrativa, sua frágil visão de mundo e de futuro é uma afronta. E Peterson precisa ser calado, antes que ele cause, em cada um de seus adversários, uma minitragédia.
Não me consta que Z. tenha se interessado pelo “12 Regras”. Ele tampouco poderá ler as outras 12 regras do próximo livro de Peterson. E, sinceramente, duvido que isso fizesse alguma diferença. Há explicações físico-químicas para a autoviolência, embora eu prefira as explicações mais complexas, de natureza filosófica e espiritual. Ao olhar para o dia nublado, Z. não entendia por que o Sol não se impunha no grito. E isso foi demais para ele. E é demais para toda uma geração que acredita que versões semiadultas de birrinhas infantis – não quero que o tio Peterson diga “seje hómi” – são aceitáveis.
De Z. fica a lembrança difusa das boas conversas, das indicações de livros, das indignações bem-humoradas, dos muitos planos nunca concretizados – inclusive aquele chope, aquele. Mas fica também o bom alerta da desistência alheia: o caos é bem-vindo e a ordem completa é uma quimera macabra. A vida fica bem mais suportável quando aceitamos isso.
Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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