Tratar julgamentos de crimes sexuais como final de Big Brother não vai diminuir a impunidade nem fazer justiça.
Há um abismo entre o que se passa na Justiça e o que é reportado sobre ela em forma de espetáculo. É evidente que o termo “estupro culposo” não constaria de uma sentença como, aliás, não consta no caso Mariana Ferrer e jamais foi dito pelo Intercept que constava. A jornalista usou um recurso linguístico comum para explicar questões técnicas complexas ao leitor e, em tempos de redes sociais, estamos diante de um prato cheio para a militância de universo simbólico.
As lutas do universo simbólico são o refúgio mais confortável dos canalhas da vida real. Compartilhar a tal hashtag #estuproculposonãoexiste dá a impressão de que a pessoa não compactua com abuso sexual ou abusadores. Será? Questionar o fato de que tal expressão não consta da sentença dá a impressão de que a pessoa respeita as leis. Será? Passamos do limite de dar espaço a isso nas nossas vidas.
Enquanto damos espaço para discussões sobre o sexo dos anjos e a construção de fachadas de falsa virtude para personalidades públicas, nos esquecemos de que isso não é um teatro, são pessoas. É muito divertido ficar dando pitaco em processo penal quando ali não tem ninguém que a gente ama como vítima nem como acusado. Qual é a nossa única certeza sobre o caso? O interrogatório foi vergonhoso.
Divirjo das almas puras que estão espalhando endereços e fotos da família do advogado de defesa porque são contra a violência, ele estava atuando no que entendeu ser a melhor defesa do seu cliente, dentro dos limites que são permitidos por esse circo irresponsável de ativismo estridente, autorreferente e incompetente, alheio à vida real. Nos Estados Unidos, a linha argumentativa que questiona a honra e a sexualidade da vítima de estupro não é permitida. Por que aqui ainda é?
Veja suas redes sociais hoje e conte quantos são os formadores de opinião oportunistas tentando adivinhar se o rapaz acusado é culpado ou se a Mariana Ferrer está mentindo. Eles não têm como saber e é indecente tratar algo dessa gravidade como se fosse final de novela. Nossos olhos precisam estar nas falhas do processo, essas sim são cristalinas e, se resolvidas, trarão melhorias.
Fosse santa a ira dos jornalistas nas redes sociais, as grandes redações de São Paulo, por exemplo, não teriam lugar para explicações de por que alguém comete assédio sexual sem querer e como uma vítima sai ganhando ao denunciar e perder o emprego. Os mesmos que estão indignados são os que dão e aceitam essas explicações. E, além disso, são os que não vão demitir os do outro lado, que acusarão todas as mulheres de mentir quando alegam estupro ou defenderão a legitimidade de abusar sexualmente de mulher bêbada. Farão todo esse espetáculo apenas em proveito próprio e pela mais absoluta falta de caráter, decência e limite. Nada disso tem a ver nem com justiça nem com o caso Mariana Ferrer.
Chamo a atenção para a postura de duas autoridades públicas diante do ocorrido: Damares Alves e Gilmar Mendes. Tanto a ministra dos Direitos Humanos quanto o ministro do STF agiram com precisão, demandando apuração sobre a forma de tratamento durante o interrogatório, prova de que se puniu a vítima com o processo, o que é inadmissível, tenha ela razão ou não. Muito embora o Supremo Tribunal da Internet tenha condenado à morte o advogado do caso, é bom saber que nós pagamos o salário dos outros dois, o nobre membro do Ministério Público e o juiz. Eles não ganham quase R$ 30 mil por mês para ficar quietos numa situação dessas, independentemente de quem tenha razão ali.
O estupro é um dos crimes mais difíceis de provar tecnicamente e todos os casos têm um envolvimento emocional profundo e dramático. É fundamental que Ministério Público e Judiciário garantam o equilíbrio do processo para que sempre se apure a verdade e se faça a melhor justiça possível. Se o promotor e o juiz permitiram que a audiência chegasse a esse ponto, que omissões mais pode ter esse processo? Será que temos ali os elementos que cheguem o mais próximo possível da verdade ou apenas um sarapatel de burocracia com preconceitos pessoais? É preciso apurar e não apenas por este caso específico, por todos os outros que não vimos. Um tribunal não vira um botequim de beira da estrada de repente e da noite para o dia. Se todos ali calaram é porque estão acostumados.
A militância de massagem no próprio ego
Por que toda a discussão começou a girar em torno da expressão “estupro culposo”, que nem estava na sentença e que o Intercept jamais disse que estava? Porque, desde o surgimento das redes sociais, temos confundido massagem no próprio ego com militância ou ativismo. A diferença entre uma coisa e outra está no impacto na vida real.
Analise com racionalidade o impacto na vida real de todo esse onanismo intelectual em torno da expressão “estupro culposo”. Como ajudará outras vítimas de estupro? Como vai conscientizar as pessoas sobre consentimento? Como vai explicar sobre o funcionamento das nossas leis? Como vai garantir a presunção de inocência a quem for falsamente acusado? Não vai. Não é uma ação para a vida real, onde essa expressão é um recurso linguístico de uma jornalista. É uma ação para um universo simbólico, o único em que essa expressão existe.
O que se quis explicar com a expressão “estupro culposo”? Um conceito que surgiu na reforma da lei do estupro de 2009, uma pérola do universo simbólico. Todo criminoso sexual passou a ser formalmente chamado de estuprador e a vítima foi empoderada com a retirada de expressões como “virgem” ou “inexperiente” – antes já haviam retirado “mulher honesta”. Resultado prático: penas de estupradores reduzidas pela metade e equivalentes a roubar um passe de ônibus e R$ 10. Mais que isso, estupro de criança sendo reduzido a “importunação sexual”.
Não é à toa que o inferno está lotado de boas intenções. Desconfio até que exista lá um Brazilian Day para os artistas de espetáculo penal, invariavelmente ótimos de iniciativa e patéticos de terminativa. Na reforma de 2009, o crime de sedução foi convertido para o que agora chama-se estupro de vulnerável, um crime diferente do estupro, crime contra a liberdade sexual. Trata-se de um crime sexual contra vulnerável.Sedução (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
Art. 217 – Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança: (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)Pena – reclusão, de dois a quatro anos. (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1 o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
O caso Mariana Ferrer é uma pérola de como vítimas sempre são esmagadas pela combinação entre o marketing de “endurecimento das penas” e a militância de universo simbólico. No caso concreto, teríamos facilmente um enquadramento no antigo crime de sedução, mas ela seria retratada como frágil. No novo crime, de pena mais alta e com o nome “estupro”, é preciso comprovar que a mulher estava impossibilitada de decidir e esse ônus é de quem acusa. A prova não foi feita. Isso é o que se chamou de “estupro culposo”: houve o ato sexual, mas não se comprovou que ela estava impossibilitada de decidir ou que ele pudesse desconfiar disso.
Isso quer dizer que ela mentiu? Pode ser que sim e pode ser que não. Nós não sabemos. Sabemos apenas que, diante da esculhambação completa que vimos naquele vídeo do interrogatório, há razão suficiente para duvidar da eficiência na coleta das provas pelo Ministério Público. Isso quer dizer que o Ministério Público foi parcial? Pode ser que sim e pode ser que não. Sabemos apenas que permitiu uma violação injustificável no interrogatório e as reações do tipo #estuproculposonãoexiste não mudarão em nada este e outros processos semelhantes. Não é novela nem campeonato de virtude, são vidas humanas, histórias reais de jovens.
O terremoto silencioso
Continuo defendendo que é uma irresponsabilidade da imprensa advogar que meninas e mulheres devem denunciar violência sexual esperando punição certa e tratamento decente. Não terão e não terão sequer a solidariedade dos que hoje estão levantando hashtag lacradora. A espetacularização do processo penal nos últimos anos leva muitas pessoas a realmente acreditar que os casos são decididos conforme elas imaginam que sejam, não como se decide na vida real.
No mundo real, policiais ficam indignados diariamente com famílias que protegem abusadores de crianças ou insinuam que elas o provocavam sexualmente. Mulheres que denunciam vão arriscar sua reputação e, quando escolhem denunciar, têm de saber que correm sim o risco de perder o emprego e ser difamadas pelas costas, inclusive por esse pessoal lacrador que hoje está subindo hashtag. Quem denuncia violência sexual não tem acolhimento social e, tenha razão ou não, será tratada como leprosa. A maioria das autoridades e até organizações “contra o assédio” vão perguntar “o que você fez para ele achar que poderia fazer isso?”. Essa é a regra. Que se denuncie, mas sabendo efetivamente qual é a decisão a ser tomada.
Em lugares civilizados, em vez de ficar fingindo militar para afetar virtude ou tirar palavra ofensiva de lei, esse problema já foi resolvido. O grande nó é que o sistema brasileiro aceita que, em casos de estupro, a sexualidade e a dignidade da vítima façam parte do sistema probatório. Mudar isso é uma urgência e mudaria os processos mas, infelizmente, não dá uma hashtag legal nem serve para bancar o virtuoso ou espertão.
Vários países proíbem que a conduta sexual da vítima ou referências à sua moral façam parte do conjunto probatório. Não pode e ponto. O julgamento de estupro é só sobre os fatos. Em 1994, os Estados Unidos estabeleceram a Regra 412, que simplesmente proíbe o uso desse tipo de alegação e estipula quais são as exceções específicas e quais os passos concretos para analisar se, nesses casos, se pode incluir algo no processo. Seria uma mudança simples no nosso Código de Processo Penal e mais efetiva que toda essa patrulha linguística.
Regra 412 – Casos de crimes sexuais: o comportamento sexual ou predisposição da vítima(a) Usos proibidos. As seguintes provas não são admissíveis em um processo civil ou criminal envolvendo alegada má conduta sexual:
(1) evidência oferecida para provar que a vítima se envolveu em outro comportamento sexual; ou
(2) evidências oferecidas para provar a predisposição sexual da vítima.
As exceções são aquelas em que a prova fornecida pode, objetivamente, inocentar o réu como, por exemplo, a prova de que o DNA colhido após a violência sexual não é dele. Mas há que se seguir um ritual.
(c) Procedimento para determinar a admissibilidade.(1) Moção. Se uma parte pretende oferecer provas ao abrigo da Regra 412 (b), a parte deve:
(A) apresentar uma moção que descreva especificamente a evidência e declare o propósito para o qual ela deve ser oferecida;
(B) fazê-lo pelo menos 14 dias antes do julgamento, a menos que o tribunal, por justa causa, estabeleça um prazo diferente;
(C) apresentar a moção a todas as partes; e
(D) notificar a vítima ou, quando apropriado, o tutor ou representante da vítima.
(2) Oitiva. Antes de admitir provas ao abrigo desta regra, o tribunal deve conduzir uma audiência à porta fechada e dar à vítima e às partes o direito de comparecer e ser ouvidas. A menos que o tribunal ordene o contrário, a moção, os materiais relacionados e o registro da audiência devem ser e permanecer selados.
Processos por crimes sexuais deixam chagas profundas na alma das vítimas e, nos casos de acusações falsas ou de identificações equivocadas de suspeitos, também podem causar danos irreversíveis. É fundamental que cada caso seja tratado como único, com o respeito e sobriedade necessários para não piorar ainda mais a situação. Toda generalização, mesmo as bem intencionadas, contribuem apenas para o espetáculo e não vão melhorar a chaga dos abusos sexuais na nossa sociedade.
Partir do caso Mariana Ferrer para advogar que “a palavra da vítima deve prevalecer sobre as provas” ou que “as mulheres se aproveitam das denúncias para destruir a vida dos homens” pode ser um espetáculo tão divertido e com os mesmos resultados da arena romana. Pessoas não são estatísticas, são vidas únicas cuja dignidade merece mais cuidado do que a nossa vaidade de justiceiros sociais ou detetives.
As instituições, tão malhadas pelos justiceiros sociais de teclado, estão funcionando neste caso e espero que a ação frutifique. O Conselho Nacional do Ministério Público abriu procedimento sobre a conduta do promotor. O Conselho Nacional de Justiça abriu procedimento sobre a conduta do juiz. A Ordem dos Advogados do Brasil pediu explicações ao advogado. Em 2015, julgando um caso da Eslovênia, a Corte Internacional de Direitos Humanos já decidiu que espetáculos semelhantes ao que vimos neste caso não são admissíveis em processos de estupro, pouco importa quem esteja com a razão.
Crimes sexuais revoltam as pessoas, projetamos no noticiário nossos medos e pesadelos. Falar de sexo num contexto saudável já é complicado, envolvendo violência e conflito passa a ser traumático. A depender das nossas experiências individuais, imediatamente nos identificaremos com um lado ou outro, com o calvário da agressão impune ou da acusação infundada. Ocorre que o caso do noticiário não é o nosso, é outro e real, envolve sofrimentos e traumas que sequer imaginamos.
Nas últimas vezes em que o Brasil viveu um frisson semelhante em torno de processos de estupro, terminamos com espetáculos midiáticos e leis capengas anunciadas como panaceia. Façamos diferente desta vez, é preciso redirecionar nossas energias para mostrar que rejeitamos a espetacularização da justiça penal e queremos um sistema que vá além de esculachar suspeitos e exibir culpados na televisão, queremos a verdade em todos os seus ângulos. Se gritaria e confusão resolvessem alguma coisa, a sinuca da esquina aqui de casa já seria a Noruega.
Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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