Os terraplanistas sentem-se humilhados diante do saber e respondem com insultos
No dia 10 de setembro perdemos o astrofísico brasileiro João Steiner. Tinha 70 anos de idade. Professor titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, foi também diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da mesma universidade e coordenou a participação brasileira na construção do Telescópio Gigante de Magalhães, o maior já feito até hoje, que será inaugurado em 2024, nos Andes chilenos.
Sorriso acolhedor, cabelos brancos, longos, por vezes indisciplinados, João tinha o physique du rôle do gênio bonachão, um tipo meio cinematográfico. Não havia na USP ninguém mais desarmado e menos arrogante do que ele. Membro da World Academy of Sciences, foi uma das maiores autoridades do mundo em buracos negros, mas não botava banca. Amava a ciência e a humanidade.
Uma vez, almoçando com um colega menos graduado no restaurante que fica atrás da Faculdade de Economia, na Cidade Universitária, ouviu uma pergunta que o desconcertou: qual era a sua opinião sobre o fato de um astronauta ser ministro da Ciência e da Tecnologia no Brasil? João sabia perfeitamente do descalabro e da incultura que começavam a se instalar no poder, mas, discreto por estilo e convicção, não se prestava a alaridos panfletários. Serenamente, pousou as duas mãos sobre a mesa, uma de cada lado do prato, e achou um ângulo de escape onde só havia más notícias: “Pelo menos ele sabe que a Terra é redonda”. A inteligência de João Steiner era assim, sempre nos presenteava com um pouco de bom humor.
No ano de 194 antes de Cristo perdemos Eratóstenes de Cirene, matemático e bibliotecário da Biblioteca de Alexandria. Tinha 82 anos de idade e deve ter sido um cara interessante, ele também. Medindo longas distâncias em passos e aplicando fórmulas trigonométricas, realizou um cálculo quase inacreditável. A cosmologia nascente já tinha percebido a esfericidade da Terra (Platão fala disso no Fédon), mas Eratóstenes quis saber o tamanho exato da circunferência do nosso planeta. De acordo com as contas que fez, a medida (convertida ao sistema métrico atual) seria de 39.700 quilômetros. Pelos números que conhecemos hoje, o grande bibliotecário errou por míseros 308 quilômetros, para menos, mas acertou no fundamental: deu um chega pra lá na chatice e na platitude.
O nosso problema é que, apesar dele, a chatice e a platitude não desistiram. Haja boçalidade! O discurso terraplanista angaria adeptos fervorosos, que primam pela rabugice enfurecida, ressentida, invejosa, destrutiva. Quando dão curso à conversa de que a Terra é plana, não pretendem dizer a verdade, escarnecem da verdade, apenas celebram seu rito bestial de afrontar a cultura e o espírito. Sentem-se humilhados diante do saber e respondem com insultos. Tomados por ódios pestilentos, marcham como autômatos para implantar sua igualdade na estupidez e sua unidade na servidão. Aí estão eles, em toda parte, a bordo de sua indústria de calúnias, prestando serviços voluntários aos delírios conspiratórios mais estapafúrdios. Dizem que ninguém foi à Lua, que vacina chinesa faz mal à saúde, que o nazismo era de esquerda, que o novo coronavírus é comunista, que Osama bin Laden não morreu e que Barack Obama não é americano, mas um muçulmano disfarçado e protegido pela máfia de pedófilos do Partido Democrata. O descalabro e a incultura não arredam pé do poder.
E então? De onde tirar bom humor? O que fazer?
No dia 27 de outubro, agora mesmo, na semana passada, o crítico literário, professor, poeta e compositor José Miguel Wisnik deu sua resposta para essas perguntas. O que fazer? Ora, cantar. Wisnik lançou um single no YouTube em que interpreta sua nova composição: A Terra plana. No título, que fique bem redondo, a palavra “plana” entra não como adjetivo, mas como verbo. A Terra, segundo o poeta, vai planando pelo cosmo, é isso. A letra cuida de explicar: “(…) entre rastros luminosos de corpos distantes (…) a Terra plana (…) redondamente certa (…) no universo deserto, curvo e dilatado sem planos nem enganos”.
A esta altura de tantas baixezas, a poesia não vai ensinar a ninguém o que Eratóstenes já tinha calculado, mas ao menos nos ajuda a dissolver a ignorância que incinera a imaginação. Quantos incêndios, quantas cinzas, quantas mortes… Queimaram a biblioteca de Alexandria, queimaram mulheres, cientistas, livros, florestas, e ainda queimam. Mesmo assim, canta Wisnik, “a Terra simplesmente plana carregando o peso da ganância que a maltrata”. A gente escuta e também plana com esse hino leve para um tempo de chumbo. A pegada é de passeata musical. No início da canção entram vozes de crianças repetindo uma palavra de ordem: “A Terra não é plana, a Terra não é chata”. Uma percussão fina ajuda. No piano, a nota si, sozinha, marca o compasso.
E lá vai a Terra, planando, flanando, “sem um chão que não seja o seu, sem um chão que não seja o céu”. O céu é o chão. Quando a gente olha para o alto, pensa que ele é azul. Quando, lá do alto, o astronauta contemplou a nossa redondice, viu que azul era ela. Até quando? Azuis eram os olhos de João Steiner.
JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
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