Com alguma sorte, amanhã a essa hora você, leitor, já saberá se Joe Biden foi eleito o novo presidente dos Estados Unidos ou se Donald Trump terá mais quatro anos de mandato. Não tenho esse privilégio, porque escrevo o texto antecipadamente. Por consequência, com alguma sorte você estará aí todo feliz pela vitória de um ou de outro. E todo triste ou revoltado pela derrota de um ou de outro.
Nas últimas semanas, testemunhei várias briguinhas de bidenistas de Cabrobó do Oeste contra trumpistas de Itapecerica do Mato Dentro. O primeiro dizia que o segundo levaria os Estados Unidos para o buraco, e vice-versa. Eram brigas muitas vezes raivosas, cheias de paixão, mas outras vezes técnicas, com gráficos, projeções científicas, frases de Churchill e Martin Luther King. A coisa toda.
O que me levou a cofiar a barba demoradamente, como naqueles romanções do século XIX, e me perguntar por que nós, brasileiros sem voto ou influência, nos preocupamos tanto com a eleição norte-americana. Foi quando tirei meu boné MAGA e vim para o escritório escrever este texto.
Na discussão estéril dos meus dois personagens caricatos, dois capiaus preocupados com o destino da maior potência do mundo, há um quê de soberba. Me refiro à ideia (evidentemente falsa) de que nossa opinião, nossa análise da realidade e do cenário político, tem consequências concretas, que por sua vez se traduziriam em consequências para a vida das pessoas. Serve para as eleições norte-americanas e para as brasileiras também.
E há sobretudo medo. Muito medo. É interessante perceber como grande parte do interesse recente por questões político-partidárias nascem do medo. Para os bidenistas, Donald Trump é o anticristo, o fascista-alaranjado, a encarnação do mal. E às vezes também só um incompetente ridículo que faz os norte-americanos passarem vergonha. Para os trumpistas, por sua vez, Biden é, além de um idoso à beira da senilidade, um comunista inescrupuloso que transformará os Estados Unidos numa Venezuela. Ou coisa parecida.
Diz o lugar-comum que o presidente dos Estados Unidos é tão influente que o mundo inteiro deveria ter direito a escolhê-lo. Bobagem. Os Estados Unidos ainda são a maior potência econômica, militar e cultural do mundo, mas sua influência é difusa. Claro que se o presidente dos Estados Unidos decidir declarar uma guerra isso terá consequências para a população do país atacado. Mas são situações excepcionais. No cotidiano, a influência dos Estados Unidos se faz presente mais numa série qualquer da Netflix do que num suposto poder de escolha entre a vida e a morte ou a prosperidade e a miséria do mundo.
Ainda mais para nós, brasileiros, que historicamente, e apesar de toda a doutrinação de professores de história que insistem em usar o termo “estadunidense”, temos ótimas relações com os Estados Unidos. Ah, mas a tarifa sobre o aço. Ah, mas as exportações de suco de laranja. Sem falar no preço do dólar. Sim, essas questões econômicas têm seu peso, mas não deveriam ser tão relevantes a ponto de levar o brasileiro para a frente da televisão, acompanhando ansiosamente a apuração dos votos e se indignando com a mera existência de um colégio eleitoral.
Se nos envolvemos emocionalmente também numa eleição na qual não temos direito a voto deve ser porque estamos sempre em busca de um time para torcer. Temos de nos declarar democratas ou republicanos, mesmo que esses partidos estejam a anos-luz da nossa realidade política. Temos de deixar clara nossa opção por Trump ou Biden porque, de alguma forma, isso reflete nossa identidade. E não há pecado mais mortal hoje em dia do que ser uma pessoa sem uma identidade muito claramente exposta. Até para que eu possa saber se devo considerá-la fascista ou comunista antes mesmo de saber o nome dela.
Eu, de você, dormiria em paz nesta noite. E também nas próximas. Durma o sono dos justos, independentemente de quem tenha ganhado a eleição norte-americana. Biden não vai transformar o país numa Venezuela e tampouco vai nomear um gabinete formado apenas por ministrxs trans. Trump, por sua vez, não vai expulsar todos os imigrantes ilegais (inclusive aquele seu primo de Governador Valadares) nem trazer de volta as leis Jim Crow.
Porque os Estados Unidos (ainda) têm instituições sólidas o bastante para impedir que Biden ou Trump, na condição de chefes da nação mais poderosa da história, tomem decisões descabidas a ponto de interferirem na vida de gente como o Eduardo, que acaba de gastar todo o seu verbo to be para postar em sua conta no Twitter: “Se Biden ganhar, estamos ferrados”. No que foi devidamente respondido pela Mônica: “Não, se Trump ganhar é que estamos ferrados”.
(Conversa da qual surgiu um namoro que evoluiu para casamento, mas essa é outra história).
Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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