A democracia da cueca

Chico Rodrigues, ao fundo, com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, à frente: senador se afastou por 121 dias em uma tentativa de “baixa a poeira”. Filho dele assume no lugar.| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Imagine por um instante – mas só por um instante; tente pensar em alguma outra coisa o mais rápido possível – que o senador que foi pego em flagrante escondendo dinheiro na cueca tivesse sido mais esperto do que foi e, com isso, pudesse ter enganado o rapa da polícia. Ninguém teria ficado sabendo de nada, não é mesmo? Imagine, então, o que teria acontecido na vida real.

Esse homem, por mais demente que a coisa possa parecer, teria votado na aprovação do novo ministro do Supremo Tribunal Federal, a “corte” ótima e máxima da Justiça brasileira. É isso mesmo: um indivíduo acusado de ser ladrão, e ladrão de dinheiro que deveria ter ido para o combate da Covid-19, nomeia o supremo magistrado que tem de julgar, justamente, os acusados de ladroagem. É essa a regra, no Brasil. São essas as “instituições”.

O senador da cueca só não votou porque os colegas, que estão fechados com ele, acharam que assim também já seria demais; arrumou-se uma “licença de 90 dias” para o homem e a safadeza, como acontece em 10 a cada 10 vezes no Senado Federal, foi toda para baixo do tapete.

Os 81 senadores da República, agora, vão esperar que a história esteja esquecida daqui a três meses; aí, quando ninguém estiver mais lembrando, o Sr. Cueca volta de fininho para a sua cadeira, é cumprimentado afetuosamente pela companheirada por ter escapado dessa e pode dedicar-se em paz à retomada de seus projetos.

Não pode ser de outro jeito: a maioria (totalidade?) dos senadores brasileiros é, pura e simplesmente, a favor de meter a mão em dinheiro público – embora possam preferir outros lugares para escondê-lo da polícia. Se são a favor do roubo, não podem ficar contra quando um colega é pego roubando.

A coisa esta fechada pelos sete cantos – não há mínima possibilidade de que o público pagante possa se defender do Senado e da Câmara de Deputados que estão aí, nem do STF e do resto da tribunalzada que se espalha do Oiapoque ao Chuí.

Se por algum motivo o senador da cueca tiver de ficar afastado do cargo por mais de 120 dias, nossas instituições sagradas mandam que o lugar seja entregue ao “suplente”. E quem é esse “suplente”? O filho do próprio senador que foi flagrado enfiando dinheiro nas roupas íntimas. Ou seja: é rigorosamente impossível, pelo que está estabelecido na Constituição Federal, qualquer incômodo real para os delinquentes do Congresso. Sai o pai, entra o filho, e a verba da Covid-19 continua à disposição da família.

O mais chato é que o cidadão ainda tem de aguentar a discurseira dos grandes vultos da nossa vida pública exigindo o “respeito às instituições” – e as caras aflitas dos locutores de telejornais do horário nobre, em seu surto permanente de defesa da “democracia”. Instituições e democracia no Brasil são o senador da cueca, seu filho e tudo o que vem junto. O resto é conversa.

J.R. Guzzo

J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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