Hora do almoço. Ligo a televisão só para ter um ruído de fundo, quando sou seduzido pela propaganda eleitoral gratuita. Aquela que, apesar do nome, custa ao menos meio bilhão de reais ao contribuinte. Por sorte ou azar, sei lá, é a vez dos candidatos daquele partido que antes ostentava uma estrela vermelha e cujo nome não sei se a censura da Justiça Eleitoral me deixa citar. Aquele mesmo.
A primeira a se apresentar é uma menina com cara de pré-adolescente. O maior feito dela foi ter participado, há alguns anos, de uma invasão à Assembleia Legislativa do Paraná e ter feito um discurso sentimentalóide em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade. Aquele blá-blá-blá sindical todo. A segunda inserção é a de um mandato coletivo – uma excrescência tupiniquim que distorce completamente o sentido da democracia representativa, mas que, por algum motivo que me escapa, conta com a bênção da sempre vigilante Justiça Eleitoral.
Foi, porém, o terceiro candidato o que mais me chamou a atenção. Era um homem de seus trinta e poucos anos, cujo nome e número na urna não guardei (e nem poderia divulgar por causa da mordaça da Justiça Eleitoral). Ele usava um poncho e falava com um semissorriso entre o jocoso e o desafiador. “Sou comunista, esquerdista, pe%$#ta mesmo!”, disse. E eu arregalei os olhos porque o tom era o de alguém confessando que ser todas essas algumas (ou pelo menos uma delas) é uma transgressão moral – o proverbial soco na cara da sociedade.
Me senti imediatamente na obrigação de tentar compreender aquele homem. De vestir as sandálias dele, como se diz (até porque um homem que usa poncho certamente tem nos pés uma sandália franciscana daquelas bem caras). De tentar ver o mundo com os olhos de uma pessoa que, a despeito de todas as notícias dos últimos quatro anos, continua fiel a seu Líder, à instituição que concebeu uma geração de corruptos e, pior, às suas ideias mentirosas e nocivas.
Nabokov que o diga!
É um exercício difícil, mas recompensador. E serve para todas as situações, não só para a política. Agora mesmo terminei de assistir a The Mole, um documentário absolutamente fascinante (e maluco) sobre a Coreia do Norte, e cada vez que um norte-coreano corrupto do alto escalão aparecia na tela eu tinha gana de me sentar com ele e perguntar se ele acreditava mesmo no que dizia e se valia a pena destruir a vida de milhões em troca de uma garrafa de conhaque Hennessy.
Antes de as redes sociais nos escravizarem e roubarem nosso tempo e capacidade de atenção e antes das campanhas que insistem em dizer que leitura é só prazer & diversão, a literatura dava conta disso. Vi o mundo pelos olhos de judeus ortodoxos graças a Isaac Bashevis Singer; de um assassino graças a Dostoiévski; de um jagunço graças a Guimarães Rosa. Os melhores livros permitem que sondemos profundamente as mais diversas e perversas almas. Nabokov que o diga!
E, de todas as almas, as mais exploradas pela literatura do século XX talvez sejam as dos comunistas pré-Queda do Muro de Berlim e, num contexto mais local, pré-Lava Jato. O mundo que eles viam era sempre um mundo que precisava desesperadamente de liberdade, igualdade e fraternidade – desde que providas por um herói cheio de boas intenções e com um passado sofrido, e um governo centralizado, mas isso não vem, ou não vinha, ao caso.
A literatura, contudo, não teve ainda a oportunidade de sondar a alma desses neocomunistas como o que veste poncho e bate no peito, todo cheio de si. Dessas pessoas que optam conscientemente por ignorar a morte de milhões nos gulags, a fome, a corrupção, os atropelos lógicos e se mantêm (por teimosia, birra, fé ou um outro elemento místico qualquer que por ora me falta) retos em seu propósito de criar uma das milhares de versões da tal Ditadura do Proletariado.
Eu e minhas circunstâncias
Para tanto, fui obrigado a recorrer à imaginação. Mais ou menos como fiz apressadamente no caso da moça lá toda orgulhosa de ter ateado fogo às igrejas no Chile. O que será que os professores de história do candidato-de-poncho lhe ensinaram? Será que ele bateu a cabeça quando era criança? Será que seus amigos o admiram mais, que o consideram ousadamente corajoso por aparecer na TV, de poncho e tudo, batendo no peito e dizendo “sou comunista mesmo”?
São muitos os serás que explicam como um homem pode chegar à maturidade agindo como um menino que olha para a mãe e para o doce proibido e não hesita em comer o doce, mesmo sabendo que o desfecho dessa história é uma surra de cinta (mas não conta para o Conselho Tutelar, hein?).
E o resultado desse exercício, já disse, é sempre recompensador. A gente se livra imediatamente da raiva e percebe que também os comunistas são “eles mesmos e suas circunstâncias”, para usar a definição de Ortega y Gasset. E entende caridosamente que, fossem outras as condições de temperatura e pressão, talvez nós é que estaríamos nos prestando ao ridículo do combo poncho-arrogância-comunismo.
E agradece pelo que quer que tenha nos salvado desta sina.
Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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