André do Rap e o dilema do sistema prisional: redimir é possível?

André do Rap e o dilema do sistema prisional: redimir é possível?

A essa altura, você já deve estar cansado de saber que o megaministro Marco Aurélio Mello, do STF, soltou o megatraficante do PCC conhecido pela alcunha de André do Rap. A decisão controversa, típica do ministro de prosódia curiosa e do eterno sorrisinho de escárnio no canto da boca, suscita boas (ainda que um tanto aborrecidas) questões sobre a necessária cegueira da justiça e sobre a incapacidade dos juízes de compreenderem a realidade para além da tal “letra fria da lei”.

Mas uma questão que não está sendo muito abordada em meio a esse entrevero com contornos de ópera bufa é a capacidade ou incapacidade de redenção do nosso sistema prisional. Na teoria, o criminoso, seja ele André do Rap, Marcola, Goleiro Bruno ou Lula, deveria ficar preso a fim de pagar sua dívida para com a sociedade, se redimir e ser ressocializado, isto é, voltar à vida supostamente normal.

Tanto é assim que os legisladores estipularam como pena máxima no Brasil os famigerados 30 anos. Trata-se de um limite punitivo bastante impopular, sobretudo com os altos índices de criminalidade atuais e levando em conta os anseios da população por penas maiores e mais severas. O fato é que o limite de três décadas sob regime fechado e as muitas possibilidades de progressão de pena privilegiam a liberdade do criminoso supostamente redimido.

Enquanto sociedade, e na teoria, isso significa que acreditamos na capacidade de recuperação do ser humano, seja ele um ladrãozinho de galinha, um corrupto, um parricida ou um estuprador. Mas sejamos sinceros: essa teoria, embora extremamente elevada e cristã, está muito dissociada da realidade. Ainda que haja pessoas capazes de defender uma excrescência como o abolicionismo penal, a verdade é que a imensa maioria quer que bandido “apodreça na cadeia”.

Daí porque temos casos célebres de bandidos teoricamente recuperados cuja redenção, aos olhos da sociedade, é impossível. Pegue o Goleiro Bruno, por exemplo. Para a “porção Excel da Justiça”, aquela responsável por tabular penas e calcular progressões, ele estaria plenamente apto ao convívio social depois de ter passado seis anos e sete meses atrás das grades. Mas não está. Prova disso é o espanto, quando não revolta, sempre que surgem notícias de que o Goleiro Bruno conseguiu um emprego ou, pior, arranjou uma namorada.

Arrependimento

Há nessa equação, bem sei, a questão do arrependimento. Mas, mesmo que houvesse um exame de sangue ou uma ressonância magnética capaz de varrer a alma do criminoso e atestar seu arrependimento sincero, será que ele ainda assim conseguiria ser visto com outros olhos (talvez olhos misericordiosos) pela sociedade, pela comunidade na qual vivia, pelas vítimas de seu crime? Voltando ao Goleiro Bruno, apenas para ilustrar o argumento, existe alguma possibilidade de um dia ele voltar a ser apenas Bruno Fernandes de Souza?

E, no entanto, me parece impossível viver sem que exista, até mesmo para os mais monstruosos, esse horizonte de perdão oficial, cem por cento teórico e totalmente dissociado da realidade. De outra forma, qual o sentido de manter custosas prisões? Nem mesmo o sistema jurídico, que pressupõe a inocência até que se prove o contrário, resistiria à impossibilidade da redenção.

Por isso, no fundo, toda essa discussão entre garantismo e “punitivismo” me parece apenas uma diversão para pessoas que gostam de expressões em latim, normas da ABNT e notas de rodapé. O fato é que o sistema penal brasileiro como todo é um autoengano, uma mentira que contamos para nós mesmos a fim de nos convencermos de que o ser humano é passível, sim, de arrependimento e redenção.

Civilização

Falando assim, até parece uma coisa ruim. Não é. Afinal, a tão atacada Civilização Ocidental foi erguida justamente para que pudéssemos subjugar nossos instintos mais primitivos, inclusive o de vingança, às expressões mais elevadas da razão.

Daí porque decisões como a do ministro Marco Aurélio Mello são extremamente danosas. Elas corroem a base civilizatória e dão vazão justamente aos tais instintos primitivos que a muito custo reprimimos (ler O Mal-Estar na Civilização é necessário). Precisamos de lei, penas e prisões para não nos transformarmos em pessoas como aquelas que, durante rebeliões, jogam futebol com a cabeça dos outros prisioneiros.

Ao garantir a liberdade para André do Rap, foi como se Marco Aurélio Mello simplesmente desistisse de entoar a doce canção de ninar (sem ironia!) de um sistema que fala de justiça, reparação e redenção e impusesse a lei mais cruel que existe: a da selva.

Foto de perfil de Paulo Polzonoff Jr.

Paulo Polzonoff Jr.

Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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