Parque de dunas na Bahia é um dos maiores do Nordeste, mas está desaparecendo graças à ação de grupos armados que ameaçam promotor, ambientalistas e fiscais, enquanto roubam areia para depósitos em Salvador
Ao longo de milhares de anos, formações rochosas vão se decompondo até virarem os grãos de areia, que, soprados pelos ventos, também num longo processo, dão origem às dunas como as conhecemos hoje. Da noite para o dia, como num sopro, as dunas de Jauá desaparecem. Não porque são levadas pelos ventos. São os novos “capitães de areia” na Bahia de Jorge Amado.
Ao contrário dos meninos do romance, são homens feitos que agem na madrugada, roubando o sedimento milenar do Parque das Dunas de Jauá e Abrantes, do município de Camaçari até Salvador, 51 Km distante. Usam três ferramentas, a depender da situação: pás, para retirar; pistolas, para intimidar; e dinheiro vivo, para extorquir a Polícia que aparecer. Nem sempre conseguem.
Os caminhões-caçamba saem vazios, à noite, de Salvador, em comboios com até seis veículos. Para que o retorno seja garantido, contam com atuação de olheiros na vizinhança próximo ao local de extração. Todos são avisados pelo WhatsApp no GDA, o Grupo da Areia.
Como a fiscalização é frágil, o roubo segue regularmente, mas os ladrões têm uma incômoda pedra no caminho que atende pelo nome de Ana. Indignada com o extravio da areia, destruição da vegetação rasteira e o depósito de lixo deixado pelos traficantes no parque de dunas, Ana Maria Mandim, de 75 anos, jornalista e presidente da associação de moradores, grita, coloca o carro atrás dos caminhões, reclama com a Prefeitura de Camaçari, responsável pela Unidade de Conservação há 30 anos constituída apenas no papel, conforme o Ministério Público e a Secretaria de Meio Ambiente. Além dos roubos, percebe a ocupação irregular na região de dunas e sai fotografando tudo.
Ameaças
“Os caçambeiros vão lhe pegar!”. A mulher para, pensa e guarda a frase na caixinha de ameaças acumuladas ao longo dos últimos 20 anos. “Você percebe que é pra lhe imobilizar, amedrontar, ficar imóvel e não fazer mais nada. Ameaça é pra isso aí. Me deixa vulnerável, mas eu pergunto: que vou fazer se tô vendo aquilo se repetir, vendo as caçambas saírem, a areia derramando? Chega uma hora de pensar o seguinte: temos que fazer alguma coisa“.
O Grupo da Areia pensou o mesmo e fez: um recado mais contundente a Ana com tiros em sua casa, que atravessaram o portão e estilhaçaram na parede da garagem.
Era noite de São João, estava no escritório da casa, onde montou uma pequena redação de jornal comunitário feito somente por ela. Bem diferente das redações dos grandes jornais em que trabalhou nos anos 1980, em São Paulo. A jornalista pensou que se tratasse de fogos de artifício, até perceber também que havia uma “fogueira” no seu medidor de energia elétrica. “Fiquei cinco dias sem luz”.
Não bastasse ser retirada de uma Unidade de Conservação, o que é proibido por lei, a areia é vendida em depósitos de construção civil em Salvador, dando origem a estruturas frágeis. Mas até que a parede recém-rebocada apresente avarias, o dinheiro já circulou na engrenagem produtiva do negócio da areia.
Medo
“Eu, nem ninguém, tem a coragem de Ana. Ela enfrenta, denuncia, cobra da Polícia, do Ministério Público. Essas pessoas que roubam areia na madrugada são perigosas, por isso a gente se preocupa com ela”, diz “Luis”, morador próximo à área de extração que, meses após nosso encontro em sua casa, liga com uma novidade: pela primeira vez, em seis anos desde que mora ali com a esposa, dormiram a noite inteira, sem barulho das dezenas de caminhões que ladeiam sua casa em direção ao crime ambiental da meia-noite às 4h da manhã.
Um reforço da Companhia de Polícia Militar Ambiental (Coppa) espantou para longe os traficantes de areia. Melhor dizendo, não muito longe: eles estão extraindo de uma outra parte do imenso parque de dunas, um dos maiores do Nordeste.
O tráfico de areia das dunas de Jauá é feito por diferentes pessoas, mas não se trata de ações individuais. Apesar de existirem alguns caçambeiros solitários, há uma forte atuação de empresários das lojas de construção. O principal deles é tão recorrente que se autointitulou “Dono das Dunas” de Jauá. Dono de uma loja de construção em Salvador, o homem comanda um grupo de caçambeiros que agem na madrugada dentro do parque. Ele próprio acompanha a retirada e mantém uma rede de contatos “importantes”. Um dos moradores mais próximos da área da extração acompanhou sua conversa com um caçambeiro:
– Os ‘homem’ passaram pela estrada.
– É só um carro?
– É
– É dos nossos.
A referência era a uma guarnição da Polícia Militar que fazia ronda na rodovia ao lado do Parque das Dunas. “Nossos”, nesse caso, é o pronome possessivo da corrupção, o que só aumenta o poder dos ladrões. Numa tentativa de coibir a extração ilegal, uma equipe de fiscais da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) de Camaçari se aproximou da entrada principal do parque, mas antes que eles fizessem abordagem foram os próprios abordados. Sabendo que não andam armados, eles, sim, os caçambeiros expulsaram os fiscais.
Para que o negócio da areia ilegal prospere, com ou sem intimidação, é necessária uma série de “vista grossa”: na retirada da areia, no trânsito pela rodovia e na venda sem nota fiscal ou ausência de zelo para conferir sua falsidade. Nem sempre a primeira etapa funciona e tem sido assim no comando do Major Amílton Sousa, da Companhia de Polícia de Proteção Ambiental (Coppa). Com operações mais frequentes, a Coppa está reduzindo o roubo numa das áreas do parque, para alívio de Ana Mandim, até aqui a guardiã da areia do Parque de Dunas.
Numa dessas operações da Polícia Federal foi preso Fernando, em agosto de 2019, o “Dono das Dunas”. Na investigação, a PF concluiu que um agente da 26ª Delegacia de Polícia Civil de Camaçari era informante das operações da Polícia local. O caso tramita na Justiça Federal, e o “dono” obteve habeas corpus.
MPF, MP e polícias no combate
Apesar do alcance da ilegalidade, existe uma ação que mais tem combatido a extração de irregular de areia nos estados: o esforço conjunto do Ministério Público Federal, com apoio da Polícia Federal, e do Ministério Público nos estados, apoiados pelas polícias ambientais. Somente esse esforço tem feito reduzir a exploração ilegal no Parque das Dunas.
“A gente sabe que é um trabalho difícil, mas as ações têm gerado resultados. Não é só pegar aquele que está na ponta, mas quem mais se beneficia desse mercado ilegal. Estamos mais perto disso”, afirma Ronaldo Cunha, chefe da Delegacia de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (Delemaph), da Polícia Federal na Bahia.
O MPF realizou mais de 210 inquéritos em cinco anos. Em Camaçari, o Promotor de Justiça Luciano Pitta sofreu perseguições na estrada e ameaças por telefone depois que passou a investigar o desmonte nas dunas de Jauá. “A Unidade de Conservação só existe no papel, pra inglês ver”, reclamou.
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