Na última sexta-feira, durante um evento fechado da NDIA (National Defense Industry Association), que reúne empresários e experts em defesa dos Estados Unidos, um alto funcionário da administração Trump defendeu que a próxima fronteira do Pentágono é a luta contra a desinformação, que precisa ser reconhecida como o que é, arma e estratégia de guerra, não um nicho específico.
Ezra Cohen ocupa um dos postos mais altos na área de defesa, é Secretário Adjunto para Operações Especiais e Conflitos de Baixa Intensidade. Estão sob o comando dele, com um orçamento de US$ 14 bilhões ao ano, toda a organização, treinamento e equipamento do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos. Funcionário experimentado do Departamento de Defesa, hoje é responsável por toda a formulação e supervisão de políticas para contraterrorismo, operações especiais, antinarcóticos, assuntos de detidos, manutenção da paz, assistência humanitária e operações de estabilidade.
“Nossos adversários abraçam o anonimato das plataformas de mídia social e a natureza viral do fluxo de informações à medida que empregam a política de informações como um elemento integral de sua abordagem para a competição. Eles envenenam o discurso público, minam os processos democráticos, colocam os cidadãos uns contra os outros e desviam a culpa por suas atividades malignas”, declarou Ezra Cohen, alto funcionário do Departamento de Defesa dos Estados Unidos na última sexta-feira.
Na mentalidade de quem cresceu em países democráticos, pode parecer um exagero ou tentativa de cercear a liberdade de expressão dos que pensam diferente. Já os cidadãos de países como Rússia e China sabem muito bem como funciona a guerra psicológica e o poder que ela tem sobre uma sociedade. Uma pesquisa feita pela Dentsu Aegis Network recentemente mostra que nesses países, é muito mais ampla a noção do quando a publicidade direcionada é invasiva – trata-se do único negócio das redes sociais. A futurista Martha Gabriel consolidou os dados num gráfico.
A Cambridge Analytica, empresa responsável pelo primeiro escândalo mundial de uso indevido de dados pessoais para promover guerra psicológica durante eleições, é um filhote de uma empresa tradicional da área de defesa, o SCL Group. A empresa já era especializada em operações de guerra e foi pioneira ao contratar especialistas em comportamento para formular uma metodologia com base na experiência militar de uso de informação e contrainformação da OTAN. Desenvolveu-se uma metodologia que poderia ser aplicada em várias áreas, ela foi testada em países em desenvolvimento, apurada e deu origem à Cambridge Analytica, que atuou no mundo todo. A empresa fechou, mas as técnicas são usadas agora por outros especialistas e é contra isso que os EUA querem se movimentar.
O Departamento de Defesa dos Estados Unidos não consegue agir sozinho contra a arma por excelência das guerras do século XXI, a desinformação. É necessário um esforço conjunto com outras áreas e agências do governo que “integre capacidades técnicas e conhecimento institucional entre agências civis, parceiros estrangeiros e outras entidades.” , avalia Ezra Cohen. O Pentágono já tem projetos de Inteligência Artificial em teste, como o Entropy, que pretende reduzir a pressão sobre os especialistas em contrainteligência, avaliando em tempo real, com base em dados, os passos de adversários. Mas isso ainda não é suficiente para defender os cidadãos.
A ação da Rússia nas eleições dos EUA
Na primeira semana de setembro, o vice-presidente de segurança da Microsoft convocou uma entrevista coletiva à imprensa para declarar que a empresa havia detectado e frustrado centenas de ataques vindo de grupos russos e chineses contra pessoas envolvidas nas eleições presidenciais norte-americanas. “O que detectamos lembra tipos de ataques precedentes que não só têm como alvo os candidatos e funcionários das campanhas, mas também pessoas que são consultadas pelos partidos para problemas importantes”, declarou Tom Burt. Rússia e China negaram.
Uma das maiores vantagens que ditaduras têm na guerra da desinformação é a ilusão do conhecimento sobre como esse processo funciona, típica de democracias. Tanto cidadãos quanto líderes, políticos e comunicadores imaginam que a desinformação tem o objetivo de defender ou refutar ideias, então não percebem o poder de guerra dessa arma.
Na última semana, foi desmascarada pelo FBI mais uma operação da Rússia que se fazia passar por site noticioso “livre e independente”, dedicado à “defesa dos valores conservadores”. A origem do NAEBC (Newsroom for American and European Based Citizens) foi rastreada, é a inteligência russa. O registro foi feito semana passada pela agência Reuters, que foi atrás dos redatores norte-americanos que escreveram para a publicação. O método é o mesmo que o grupo usa há anos: publica postagens e replica nas redes sociais usando perfis anônimos, impulsionamento pago e disparos em massa.
Em setembro, foi desmascarado outro site gerado pela inteligência russa e divulgado por disparos em massa nas redes sociais usando perfis falsos também controlados pelo governo russo, o Peace Data. Em termos de discurso político, dedicava-se exatamente ao oposto: a pauta da esquerda e demonização de Donald Trump. As plataformas de redes sociais contiveram a disseminação viral do conteúdo e o site decidiu fechar as portas alegando perseguição. A revista Slate entrevistou alguns dos redatores norte-americanos que escreveram para a publicação.
Por que a Rússia manteria operações pregando doutrinas de direita e de esquerda ao mesmo tempo? Elas não se anulam? Porque o objetivo não é convencer, é criar o caos e estimular a divisão da sociedade e a desconfiança no sistema político e nas instituições. Nesse clima, as pessoas não sabem mais o que é verdade e tomam decisões por medo, ou seja, são as presas perfeitas para a manipulação.
Os métodos de recrutamento de cidadãos norte-americanos era igual nos dois sites e nenhum redator desconfiou de que estava trabalhando para uma operação do tipo. Os editores entravam em contato com pessoas que já escrevem artigos ideológicos e pediam mais do que eles sempre fazem. Pagavam por transferência eletrônica quase imediata e o relacionamento parecia ser o de uma redação comum, com revisão de texto e feedbacks.
Por isso não faz o menor sentido chamar operações de desinformação de “fake news”: no mundo real tanto faz se é verdade ou mentira, importa o quando causa tumulto e divide uma sociedade. Os artigos escritos eram exatamente o que os autores pensavam. Quem, por exemplo, era do “defund the police”, acabava recrutado pelo site de esquerda para falar mal da polícia. Já redatores conservadores eram chamados pelo site de direita para escrever peças imaginando o que aconteceria no mundo se a ideia de não ter mais polícia, moda dos progressistas, fosse posta em prática. Pouco importa o que foi dito, mas para quem é mandado.
A operação de desinformação é feita pela manipulação psicológica das pessoas via redes sociais. Tendo dois artigos opostos, é possível fazer parecer, por exemplo, que um tem muito mais adesão que o outro. Disparos em massa mirando as pessoas certas, ou seja, aquelas que ficam com mais medo e vão mandar a mensagem adiante, acabarão causando um efeito manada. E como saber quem são as pessoas certas? Esse é o único negócio das redes sociais: monitorar pessoas 24 horas por dia e saber seus piores medos, seus maiores sonhos, sua localização, seus hábitos, suas reações e seu círculo de influência.
Como isso funcionaria? Se uma reportagem contrária à polícia chega nas pessoas que têm relações emocionais com alguém morto numa operação policial desastrada, é muito provável que ela vai se disseminar como um rastilho de pólvora e a moda agora é pedir que não tenha mais polícia. Basta direcionar essas manifestações pelo fim da polícia a quem já foi vítima de criminosos, já perdeu parentes para a criminalidade ou tem obsessão com segurança. Daí, esse grupo recebe o outro artigo, alimentando a ideia de que um candidato poderia mesmo eliminar a existência da polícia.
A confusão estará feita e o sentimento de patriotismo, pilar central da defesa de uma nação, será esfacelado. Em vez de se enxergarem como irmãos, cidadãos do mesmo país passam a se enxergar como grupos divididos, um sempre contra o outro, desconfiados das intenções e até da dignidade de quem pensa diferente.
Quando um país deixa de entender que grupos políticos antagônicos são o mesmo lado, ou seja, o lado que defende a soberania e se une pela pátria, está exposto a interesses estrangeiros. Um povo que não enxerga o risco de confundir o amor à pátria com a ojeriza a outros países ou até a cidadãos do próprio país é um rebanho indo para o abate. Ao carrasco, resta apenas convencer de que o abatedouro é o único caminho para fugir de um inimigo implacável disposto a causar um mal iminente.
Se os teóricos da conspiração podem encontrar mil explicações ideológicas e até espirituais para esse tipo de manobra, os especialistas em guerra e defesa têm uma bem mais simples e que todos entendemos: dinheiro. Cada governo quer as melhores condições para expandir o tipo de negócio que favoreça seu povo e seus interesses nacionais e internacionais, por isso manobrar eleições em solo estrangeiro é um grande negócio. Não se trata só de favorecer um candidato ou outro mas de mostrar que o público se tornou refém e pode se voltar contra qualquer um. “Devemos aprender a viver juntos como irmãos ou morreremos juntos como tolos”, ensinou Martin Luther King. É urgente aprender.
Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher.
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