O Brasil fica cada vez mais parecido com o Brasil – quer dizer, parecido com o pior Brasil que existe. A última novidade no gênero é a seguinte: a Justiça está proibida, por decisão judicial, de julgar um grupo de cidadãos que, aparentemente, foram declarados isentos da obrigação de obedecerem ao Código Penal Brasileiro. Nem é preciso dizer quem resolveu isso, não é mesmo? Foi o STF, é claro. Também não é preciso informar quem, no STF, resolveu isso, por que você já sabe. É ele, de novo: Gilmar Mendes.
Por essa decisão, um grupo de 26 advogados de muita fama entre acusados de corrupção, políticos e gente que manda na máquina pública e em suas vizinhanças – entre eles o advogado criminal do ex-presidente Lula – não podem ser submetidos a processo penal na Justiça brasileira. Não é que não possam ser condenados, ou que devam ficar soltos até que seus casos passem “em julgado” na décima instância; não podem nem sequer ser processados para que a Justiça resolva se cometeram ou não os crimes de que são acusados.
O Ministério Público Federal denunciou os advogados (e um juiz aceitou a denúncia) porque achou esquisito que tenham recebido R$ 150 milhões a título de honorários, entre 2012 e 2018, do Sesc, Senac e Fecomércio do Rio de Janeiro. Achou esquisito porque é realmente mais do que esquisito, mesmo para os padrões do notório “Sistema S” do Rio de Janeiro: por que raios esse pessoal pagou R$ 150 milhões para advogados, se não houve nesse período, ou em qualquer outro, nenhum processo judicial de vida ou morte que justificasse gastar tanto dinheiro assim? Os advogados, basicamente, dizem que ninguém tem nada a ver com isso – e o ministro Gilmar decidiu que eles têm toda a razão.
O “Sistema S” não é um serviço privado: é um cartório monumental que vive das contribuições obrigatórias das empresas, as quais, naturalmente, são descontadas dos impostos e repassadas para o público pagante como custo do negócio. Mesmo que fosse um empreendimento particular, a lei proíbe que despesas fictícias sejam lançadas nas prestações de conta de quem quer que seja.
Mas aí é que está: no caso das denúncias de fraude no Sesc, etc. não é permitido nem mesmo desconfiar dos advogados. O ministro Gilmar decidiu que eles não podem ser processados na Justiça – e pronto. Eis aí o “garantismo” do STF num dos seus melhores momentos. É como se colocassem um cartaz na porta do tribunal com os seguintes dizeres: “Prezados acusados de corrupção: garantimos aqui a solução de 100% dos seus pepinos.”
Ninguém está dando a mínima, é claro. O “Sistema S” do Rio tomou a excelente precaução de pagar preços sem pé nem cabeça para jornalistas de horário nobre fazerem palestras em seus auditórios. Em compensação, ninguém precisa ficar esquentando a cabeça com o que vai sair no noticiário.
J.R. Guzzo
J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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