Rodrigo Maia recomendou a Paulo Guedes que assista “A queda”. É um filme sobre a derrocada de Adolf Hitler. Esse gesto distinto lembra um telefonema recebido pelo mesmo Guedes de João Dória, logo após o pedido de demissão do então ministro Sergio Moro: o governador de São Paulo convidava o ministro da Economia a abandonar o barco também, em plena pandemia. Com recados como este para o principal condutor da gestão nacional, o presidente da Câmara dos Deputados diz trabalhar pela estabilidade política do país.
Vamos então recomendar também um filme a Rodrigo Maia. Ele precisa assistir, urgente, a “O barraco do Leblon”. Nem precisa serviço de streaming ou assinatura. É só entrar no YouTube e dar de cara com esse clássico da vida contemporânea. Uma das principais funções da arte é gerar identificação, e o presidente da Câmara vai se identificar totalmente com o fenômeno de expressividade egresso da obra.
Segue a sinopse. Um carro conversível passa lentamente por uma rua nobre do Rio de Janeiro, e o primeiro impacto é pura engenharia estética: uma mulher de biquíni à noite. Ela se destaca na parte alta do carro, com seu corpão impondo-se aos passantes como um outdoor. Em movimento de sutil sensualidade, a gata se inclina em direção ao condutor do veículo, exibindo ainda mais seus predicados aos inocentes do Leblon.
De repente a cena é cortada por um evento bruto. Um objeto invade o quadro doce, risca a atmosfera romântica e atinge as costas nuas da fêmea ornamental. É um objeto leve – uma garrafa vazia de plástico – mas agressão é agressão. Está desfeito o encanto.
A potranca interrompe os movimentos suaves na sua ribalta móvel, desembarca bruscamente e marcha aprumada em direção ao agressor, que se encontra numa das mesinhas de bar distribuídas pela calçada. É uma agressora. Como se estivesse vestida para matar, e não num sumário biquíni, a deusa do pecado se transfigura em guerreira impávida e desfere um golpe certeiro – um tapão, como se diz nas artes marciais de calçada – na oponente.
Como uma soldada em missão cumprida, tendo transformado implacavelmente a agressora em vítima, a dama do biquíni noturno dá meia volta sem perder o prumo e marcha decidida de volta para o conversível – com a placidez de quem parece firmemente resolvida a mergulhar de volta no amor, como se nada tivesse acontecido. Provavelmente nem suou.
O que o barraco do Leblon tem a ver com o deputado Rodrigo Maia, e sua sugestão obscena ao ministro da Economia? Nada. O processo de identificação inerente à arte se dá, no caso, na fase interpretativa. Sim, essa obra-prima da baixaria chique mobilizou um embate intelectual à altura daqueles que sobrevinham aos filmes de Godard ou Glauber. E a crítica especializada achou uma forma de ideologizar o barraco.
Os éticos da empatia talibã, que estão há seis meses patrulhando biquíni à luz do dia e dedurando até quem sobe numa bicicleta, estavam prontos para apontar seus canhões contra a vulgaridade dessa gente subdesenvolvida e sem classe que afronta as regras de respeito à vida. Mas a maior tara de um reacionário é parecer que não é. E foi assim que os patrulheiros da Seita da Terra Parada acharam um jeito esperto de enaltecer a Afrodite barraqueira contra a agressora “conservadora”. Pode morrer de rir porque foi exatamente isso que aconteceu.
Os cúmplices do maior atentado à liberdade coletiva neste século viraram libertários em um segundo. Bastou uma pirueta retórica, com uma desinibição que nem uma garota de programa de biquíni num carro conversível à noite teria. Fica em casa, deputado. E dá uma olhada nesse clássico de conversão da hipocrisia em posição política. É muito mais pedagógico que a queda de Hitler.
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