Gênero neutro: o totalitarismo progressista perdeu a graça

Aconteceu. Dois anos depois de eu ter entrevistado o escritor Sérgio Rodrigues e o Eduardo Calbucci sobre a então novidade estranha e impraticável da chamada “linguagem não-binária”, hoje conhecida simplesmente como gênero neutro, essa forma extremista de se posicionar ideologicamente começa a ganhar força. Já tem até colégio ensinando a meninade a escrever assim.

Em 2018, lembro bem de ter escrito a matéria em meio à tradução de “A Era Progressista”, de Murray Rothbard. A cada página, eu ia entendendo um pouquinho como o progressismo, não necessariamente tão associado ao marxismo como hoje em dia, foi ganhando forma. Sempre dando mais e mais poder ao Estado e sempre impondo a vontade de um grupo sobre o outro, em nome de reparações de todos os tipos. A ideologia de gênero é assim uma espécie de Everest do progressismo.

Logo depois de ter escrito a matéria em português simples, tive a ideia de reforçar o ridículo da tal linguagem não-binária “traduzindo” o texto. Aquela era a época em que as referências ao gênero eram trocadas por “x” e, em alguns casos, por “e” ou “u”. Ingenuamente, eu acreditava que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso veria aquela aberração textual pelo que ela realmente era: uma aberração.

Eu só não contava com o acirramento das questões ideológicas envolvendo os gêneros. Ou não-gêneros. Ou generes. Já não sei mais – e quem sabe? Afirmar-se transexual ou não-binário ou qualquer dessas designações deixou de ser uma questão médica, isto é, de disforia de gênero, e passou a ser um posicionamento político-religioso. Político porque o transgênero, ao negar o gênero, se posiciona contra o que ele considera essencialmente uma relação de opressão. Religioso porque o mesmo transgênero se reafirma como um ser superior à Criação e capaz de escolher se é homem, mulher ou nada disso.

A pressão dos transgêneros, a mais ruidosa das minorais, uma vez que a disforia de gênero afeta uma porção insignificante da população e o restante não passa da explosiva combinação entre rebeldia e arrogância tipicamente adolescentes, chegou agora aos departamentos de recursos humanos das grandes empresas. E, não demora, deve contaminar outros setores suscetíveis a esse tipo de moda perversa, como a publicidade.

Daí a contaminar a língua como um todo é um pulo. E, sim, reconheço que pareço exagerado e um tanto quanto amedrontado ao prever isso. Sei que em Quixeramobim a “revolução trans” ainda levará um tempo para chegar. Mas não quero cometer o mesmo erro que cometi há dois anos, quando apostei no bom senso – e perdi. Há, de fato, um movimento (não sei se orquestrado) que pretende acabar com a ideia do homem e mulher naturais – com poucas consequências na prática, mas simbolicamente destruidoras.

E tudo isso com a anuência, ou no mínimo displicência, de todos nós que um dia sonhamos em lutar contra as manifestações de totalitarismo que aprendemos nas aulas de história. Porque é disso que se trata a ideologia de gênero: totalitarismo progressista disfarçado de tolerância, diversidade e outras palavras vazias do tipo. Mas, ah, se eu estivesse na Berlim de 1933, jamais teria compactuado com aquilo. Ah, se eu fosse um chinês teria me rebelado e acabado sozinho com a carnificina da Revolução Cultural maoísta. Ah, se eu fosse um soviético, dava uma rasteira em Stalin se ele viesse em minha direção.

É sempre muito fácil se imaginar herói de tragédias que ocorreram em outro tempo que não o nosso.

A linguagem é a maior tecnologia já criada pelo ser humano. Graças a ela, somos capazes de expressar nossos pensamentos para além do nosso tempo e de compreender ideias de épocas que há muito viraram ruínas. Querer controlar a linguagem dessa forma acintosa nada mais é do que querer confinar o pensamento alheio à estupidez pré-determinada por um grupo.

O que consola e dá esperança é que tal empreendimento, apesar do escarcéu com que se anuncia e do temor que causa, jamais deu certo. A liberdade sempre terá seus rincões de resistência. Nem que seja em Quixeramobim, com cordelistas munidos de rimas pobres que narram pelejas entre homens-homens ou mulheres-mulheres. E todos inequivocamente livres-livres.

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Paulo Polzonoff Jr.

Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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