Em meio à saudade de antigas rotinas, a decisão de seguir as restrições continua presente, apesar de angústias com a constatação de quebra das normas de segurança sanitária
Para aqueles que optaram pelo isolamento social, muitos hábitos do cotidiano precisaram ser suspensos com o início da pandemia. Sete meses depois, a saudade atravessa o peito como uma lança afiada. Falta o contato com o sal do mar na pele, o aconchego de um abraço apertado, as conversas trocadas no barzinho, o caminhar tranquilo para a padaria no sol frio da manhã e todas as outras vivências compartilhadas, seja com os amigos ou mesmo com as ruas de Fortaleza. Neste cenário, mesmo em meio a tantas ausências, ainda há aqueles que optam por continuar seguindo o isolamento
Uma dessas pessoas é a psicanalista Maria Carolina Alves de Lima, 25 anos. A decisão foi tomada por uma razão: “a responsabilidade coletiva e o compromisso com a minha época”. Sua iniciativa permanece em um mês que Fortaleza registra índice de isolamento médio de aproximadamente 39%, conforme a In Loco, empresa de geolocalização. Esse índice já chegou ao patamar de 70,1%, no dia 22 de março.
Para Carolina, ver as pessoas negligenciando os cuidados lhe enche de tristeza, principalmente por perceber que os casos de doenças e mortes podem se prolongar por muito mais tempo, a depender do ‘comportamento’ da pandemia no Ceará.
Tendo abdicado de práticas cotidianas como as aulas de yoga, os treinos diários, e as saídas com os amigos, compreende a dificuldade de abrir mão da rotina.”Eu também gostaria de retomar as minhas atividades, mas a troco de quê retomar dessa forma? É muito difícil ver as pessoas escolhendo pagar o preço com a vida do outro”, declara.
Literatura, séries e podcasts são mais consumidos na rotina de isolamento. “Basicamente, tenho estudado, consegui fazer uma rotina de estudo, por passar mais tempo em casa, consegui organizar grupo de estudo remoto”, acrescenta. O trabalho também é feito de forma remota.
Durante esses meses, as únicas saídas pontuais se deram ao supermercado e, por três vezes, às emergências de hospitais para levar o pai diagnosticado com câncer. No começo de setembro, a maior “quebra” do isolamento ocorreu quando precisou acompanhar o ente em uma internação de duas semanas, devido a uma piora no quadro de saúde. Após isso, voltou a seguir o isolamento.
O motivo de permanecer em casa, inicialmente visando a proteção dos familiares, foi modificando gradualmente ao longo da pandemia, após acompanhar as notícias e compreender a gravidade da Covid-19.
“As imagens que chegavam das valas coletivas para sepultamento, de corpos que eram perdidos e trocados no necrotério, os enterros sem velório, os relatos das pessoas que tinham perdido entes queridos, tudo isso fez com que eu passasse a ter um receio muito grande de vivenciar a morte nestas circunstâncias”, compartilha.
Angústia
Para quem sentiu no peito a dor do luto causado pela Covid-19, perceber pessoas desrespeitando as medidas de segurança sanitária e se aglomerando por lazer se torna um ato “angustiante”. Josenir Anacé, 46 anos, acompanhou as ações de seu marido, Cleilson Anacé, uma das lideranças indígenas de seu povo, realizar campanhas de conscientização sobre o coronavírus no início da pandemia. Mesmo tomando todas as precauções e cuidados sanitários, faleceu em decorrência da doença no dia 25 de maio.
O cuidado de Josenir se tornou ainda maior após a perda, optando por permanecer em casa com as duas filhas, Iane e Iasmin, de respectivamente 13 e 11 anos, mesmo com o retorno gradual das atividades.”A importância de continuar o isolamento é o fato de não existir ainda a vacina e o vírus está ‘aí’. Houve uma amenizada, sim, mas isso não quer dizer que acabou. Não acabou”, destaca Josenir, que tem reforçado os cuidados.
Por morarem em uma reserva indígena, conseguem ter espaço para realizar algumas de suas antigas atividades diárias. “Nós tocamos nosso tambor, cantamos nosso toré, temos muita planta, porque a gente vive da agricultura. Tem o que se ocupar dentro do quadrado que nós moramos”, finaliza a indígena.
Responsabilidade
Da mesma forma que Carolina, a universitária Arlene Sousa, 24 anos, também segue cuidadosamente o isolamento social. Apesar de não apresentar doenças como pressão baixa ou diabetes, tem quadro de asma e decidiu não arriscar a própria vida.
No entanto, aponta que esse distanciamento opcional reflete um cuidado não somente consigo mesma, mas com os outros. “O isolamento social é um cuidado coletivo, e a minha atitude de seguir com isso influencia nas pessoas que estão se tornando meros números de uma estatística de morte”, declara.
Antes da pandemia, Arlene costumava sair de casa de manhã e passar a maior parte do dia realizando atividades da faculdade e do estágio, conversando com os amigos e retornando para casa somente pelo turno da noite.
“No início foi extremamente difícil de superar, de não poder fazer nada disso, é um pouco enlouquecedor”, diz. Por isso, considerando o esforço realizado para seguir o isolamento e proteger a comunidade de forma geral, se sente “furiosa” ao ver bares, shoppings, praças de alimentação e lojas com aglomeração, além de praias do litoral cearense.
“É uma galera que, com certeza, tem o privilégio de estar em casa, que não tem a necessidade de estar lá. Eu penso que a atitude deles é o que destrói mais ainda um sistema que já é brutal e desigual, porque têm pessoas que precisam sair para trabalhar por obrigação, pessoas que não têm o mesmo privilégio de escolher estar no shopping ou no barzinho com petisco”, aponta ela.
Mudanças
No caso do pesquisador e jornalista Miguel Ângelo de Azevedo, conhecido como “Nirez”, de 86 anos, o isolamento social foi marcado por diversas mudanças. Acostumado a sair diariamente, pondera que a reclusão em sua casa possibilitou a oportunidade de se focar mais intensamente em outras atividades, de organização de arquivos até contato com outros pesquisadores.
“Faço muita coisa pelo computador e continuo fazendo, agora fazendo pagamento também”. Pelo meio digital, Nirez também faz a venda de livros e discos. Os filhos ficam responsáveis de fazer as entregas pelo Correios.
Com a pandemia, suas saídas diárias foram limitadas a uma ida pontual ao banco, uma vez por mês. Todo o resto é realizado com a ajuda dos filhos. “Eu sinceramente acho que não senti grande dificuldade. Nem sinto muita falta de sair. Sempre fui um sujeito muito caseiro. Eu gostava de sair diariamente para dar uma voltinha, ia na rádio universitária, em um jornal, no centro, fazia uma visita aos meus amigos”, conta.
Ainda com essa saudade no peito, Nirez sente que consegue aguentar, só devendo sair após vacinado. “Quero poder encontrar meus amigos e dar um abraço”. Para ele, viver uma quarentena em 2020 é muito mais possível do que se estivesse em 1917, uma vez que há acesso a equipamentos como computadores, rádio, televisão.”Eu imagino a pandemia que houve em 1917 a 20, quando as pessoas não tinham televisão, rádio. Como é que essas pessoas fizeram?”, questiona, deixando a pergunta em aberto com uma risada.
Aprendizados
A pesquisadora na Universidade de Fortaleza, Cynthia Melo, explica que a reclusão traz aspectos negativos com o aumento do adoecimento em saúde mental, como ansiedade e depressão. “A pandemia também nos abre possibilidade quando nos convoca a utilizar uma nova lente para um novo padrão de realidade, nos convida a rever nossas prioridades, a nos transformar e criar outras possibilidades de vida”, pondera.
Manter o bem-estar para quem vive com espaço e atividades limitados exige esforço como “cuidado com a organização dos espaços da casa, de ter um lugar certo para cada coisa. Isso é protetivo em termos de saúde mental. Ter rotina, acordar e fazer os hábitos que a gente tem de tomar banho, de se arrumar, ter um espaço correto para trabalhar, espaço de reclusão, de convívio familiar e de descanso”, propõe Cynthia Melo.
Além disso, não deve se abrir mão daqueles momentos cotidianos que faziam bem na rotina antes da pandemia. Exercício físico, interações sociais e leituras, por exemplo, podem ser adaptados com apoio dos recursos digitais, em tempos de isolamento.Você tem interesse em receber mais conteúdo da cidade de Fortaleza?
Be the first to comment on "Medo e responsabilidade coletiva: cearenses relatam por que manter isolamento há 7 meses"