Todos os dias, ou quase isso, o público recebe provas e contraprovas de que há dois Brasis vivendo no mesmo espaço, na mesma época e sob a mesma Constituição, mas com direitos diferentes entre os seus habitantes. Uns são cidadãos de primeira classe; formam cerca de 5% da população e têm empregos na máquina do Estado. Os outros 95% são de segunda classe; têm de sobreviver à custa do seu próprio esforço e pagam pelo sustento, pelos benefícios, pelos privilégios e pela segurança dos primeiros. Sua vida, entre outras coisas, é muito mais arriscada.
O mais recente demonstrativo dessa realidade é o que está acontecendo com os funcionários da Volkswagen em São Paulo e no Paraná. Ninguém pode nem sequer pensar, por dois minutos que seja, em congelar os salários do funcionalismo. Não se trata de reduzir, mesmo com redução de horas trabalhadas, e muito menos de mandar alguém embora – trata-se apenas e tão somente de não aumentar os salários, e assim mesmo só por um período limitado de tempo, enquanto durar a devastação econômica da Covid-19. Não pode: a lei não deixa, mesmo porque isso aí é ideia “fascista, contra a democracia e contra as instituições”.
Já os sindicatos de trabalhadores da Volkswagen, cujos associados fazem parte dos 95% de cidadãos de segunda categoria mencionados acima, acabam de aceitar uma proposta para ganhar menos em troca de uma garantia temporária de emprego.
Ao contrário dos sindicatos de professores públicos (que, por sinal, ameaçam fazer greve contra a reabertura das escolas), de juízes de direito, de empregados dos correios, etc. etc. etc, as organizações de cidadãos privados não se podem dar ao luxo de escolher suas condições de trabalho; vivem no mundo real da economia, e adaptar-se a ele é uma questão de sobrevivência. Não têm quem pague os seus boletos, nem garanta os seus empregos até a aposentadoria, com vencimentos integrais.
A Volkswagen, que já teve na casa dos 40 mil funcionários aqui no Brasil, está hoje com 15 mil, por conta do avanço da automação e de condições de mercado. Pode ainda cortar um terço disso. Também não tem escolha: ou reduz ou vai à falência, num país que já produziu mais de 3,7 milhões de veículos num ano, menos de 20 anos atrás, e que em 2019 ficou abaixo de 3 milhões de unidades.
Esta é a vida como ela é, no Brasil que vive fora da reserva ecológica do funcionalismo público, protegida por todas as leis e por todos os direitos.
J.R. Guzzo
J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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