Patrulha da linguagem: militância dá tiro pela culatra

Nós já cruzamos a fronteira do politicamente correto para a “novilíngua” e isso não está ajudando ninguém.

O jeito mais certo de arrumar oposição ferrenha contra uma ideia é torná-la obrigatória logo de cara. É com toda essa estratégia que os grandes mestres da novilíngua das minorias tentam conseguir direitos para os oprimidos e eliminação dos privilégios. Patrulhar a linguagem alheia sistematicamente e, vamos admitir, de forma obsessiva, não conseguiu mais direitos para nenhuma minoria.

Os que se consideram donos das minorias, no entanto, ganham notoriedade. Desde que surge fortemente nas universidades na virada do milênio e depois se transpõe para as redes sociais em meados de 2010, a patrulha da linguagem conquistou só inimigos. Os avanços reais, em termos de direitos, foram conseguidos antes ou apenas sedimentados por decisões do Supremo Tribunal Federal sobre conceitos que já estavam nas leis.

Óbvio que mudamos muito o nosso vocabulário, a linguagem evolui com as pessoas. Alguns termos e vícios caíram em desuso simplesmente porque não fazem mais sentido diante do mundo em que vivemos. “Entrei no avião e o comandante era mulher” já foi uma piada engraçadíssima. Perdeu a graça por não fazer mais sentido. Houvesse alguém mandando parar de rir, talvez fizesse sucesso até hoje. Há uma diferença entre esses avanços e xingar alguém de racista porque fala criado-mudo em vez de mesa de cabeceira.

Precisamos reconhecer que na última década atravessamos a fronteira do “politicamente correto” para a novilíngua descrita por George Orwell em 1984. Qual o limite entre as duas coisas? Uma situação é você reconhecer que o mundo evoluiu e algumas palavras ditas por despeito não precisam ser usadas. A outra situação é um grupo impor, de forma autoritária, uma restrição ou fusão de vocabulário para impedir que você pense um milímetro diferente do que mandam. Já estamos nesse ponto.

A esquerda, que idolatra Paulo Freire, recusa-se a ver a militância identitária sob o prisma de uma de suas ideias mais famosas: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Tem sido diário o festival de pessoas humilhadas publicamente por divergir de algum militante ou usar um vocabulário diferente daquele inventado por algum tipo de militância. Não estamos falando de respeito humano e à liberdade individual, mas de devolver na mesma moeda.

A reação de muitas pessoas é o outro extremo, a bancada “o mundo está muito chato” imagina ter saudades de tempos passados, à semelhança de quem só lembra as partes boas de um caso de amor desfeito. Fizemos avanços importantes que tiveram reflexo na forma como nos comunicamos e não falo aqui apenas de uma palavra ou outra.

No livro “O Crime do Restaurante Chinês”, de Boris Fausto, retratando um quádruplo assassinato que parou a São Paulo dos anos 30. Na página 104, descreve o laudo feito sobre o suspeito pelo serviço médico da época. “Se bem que apresente uma leve tendência para a ‘branquitipia’, é um normotipo completo em relação com os mulatos do centro do país (São Paulo incluído). A relação peso-valor somático, que é índice do estado de nutrição do corpo humano, mostra-se, neste caso, excessivamente superior ao normal, traduzindo ótima nutrição e forte robustez”, afirmaram os médicos.

Por que os peritos de São Paulo não usam mais termos como “branquitipia” ou “forte robustez” para descrever pessoas? Teriam sido xingados de racistas e gordofóbicos até que se renderam? Claro que não. Temos DNA, melhores médicos, vacina, sabemos mais sobre nutrição e evoluímos demais na visão de igualdade. A linguagem mudou porque o mundo é outro e o perito precisa descrever outras coisas.

Na semana passada, dois vídeos viralizaram defendendo mudança na linguagem, uma espécie de obsessão de alguns tipos de militância. No primeiro, o estilista Alexandre Herchcovitch leva uma “bronca” de participantes do reality show que ele apresenta por usar uma palavra considerada ofensiva. No outro, uma internauta que se diz militante promove sozinha uma Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa que você terá de aceitar.

Qual é a palavra “certa”: trans ou travesti? Ou a duas? Ou pergunta para a pessoa? Não se iluda, é impossível acertar porque não depende da palavra, do que é falado, depende de quem fala. Alexandre Herchcovitch disse ser “um pouco travesti”. Óbvio que ninguém nem esperou entender o que ele estava falando e já se enxergou ali uma linguagem ofensiva. E desataram a dizer que seria a mesma coisa que alguém dizer que é meio gay ou meio negro, algo altamente ofensivo. Qual seria a intenção da ofensa? A prática de enxergar intenções maléficas ocultas em cada respiração é o combustível dos radicais, de todos eles.

Na noite paulistana dos anos 90 e início dos 2000, o estilista, assumidamente homossexual, era conhecido por ousar nas produções. Vira e mexe, aparecia com um salto alto, maquiagem ou outros elementos femininos no vestuário. Será que não era essa história que ele estava contando? Claro que não e tem um motivo óbvio: ele é homem branco cisgênero, como vaticinou a participante. Não consegui entender até agora como funciona essa roleta que decide se um homem gay é minoria ou privilegiado, mas parece que a militância decide.

Por que a frase “eu sou meio travesti” seria ofensiva? Porque travesti não é sobre estar, é sobre ser, diz a militância. O problema é que a frase implode a pedra fundamental da militância trans: a possibilidade de “descobrir-se” identificado com outro gênero ainda que biologicamente aquela pessoa não seja transexual. Então é travesti só quem se veste com roupa do sexo oposto desde criancinha? E ninguém pode mudar de ideia no meio do caminho?

Os argumentos da militância radical não param em pé porque não são feitos para discussão democrática, são para calar o outro e se impor de maneira autoritária. O problema nunca é com o que foi dito nem com a intenção de dizer aquilo, mas com quem falou. Não se trata de ofensas reais, mas de disputa de poder, de encontrar uma forma de colocar o homem-branco-cis no “seu devido lugar”.

Mas o controle da linguagem feito por esse grupo não chega nem perto da patrulha de um perfil do instagram chamado “Jessicão, a feminista”. Confesso que, sinceramente, não entendi ainda se é sério ou paródia, mas trata exclusivamente sobre controle de linguagem, não fala de direitos das mulheres. Há inclusive um post propondo mudar o nome do órgão sexual feminino para “yoni” e proibir o uso da palavra vagina. O vídeo mais famoso é um em que uma moça apresenta a Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa feita por ela:

Mais uma teoria que não pára em pé. Se gênero neutro como “amigues” resolver o problema do machismo, então devemos assumir que em todos os países de língua inglesa ele foi resolvido há séculos. Não é mais fácil mudar para inglês então e ter homens feministas como Trump?

A obsessão pelo controle da linguagem não é a tentativa de fazer um mundo melhor, mais justo, livre ou de direitos iguais, é uma guerra de poder. Ela parte de um princípio verdadeiro: quanto mais falamos algo, mais reforçamos aquela ideia. O problema é como se utiliza essa ideia, na mão oposta, propondo que restringir e impor vocabulários para controlar a circulação de ideias pode garantir um mundo mais igualitário. Não vai.

“A ideia de que entregamos mais justiça social restringindo o que pode ser dito, banindo algumas ideias e terminologias e incentivando outras não tem fundamento na história, evidência ou razão”, diz o livro Cynical Theories, de Helen Pluckrose e James A. Lindsay. O argumento dos ativistas é que precisamos “desconstruir” e controlar o discurso do opressor – por exemplo, o patriarcado – para diminuir a o poder dele sobre os demais, principalmente as minorias.

“Instamos os Justiceiros Socias a verem que quanto mais atingirem seu objetivo de controlar o discurso, mais claro se tornará que sua ideologia é hegemônica: um discurso dominante, opressor, que atua em busca do poder e, portanto, precisa ser desconstruído e contra-atacado. Teremos prazer em ajudar com isso.”, provoca o livro Cynical Theories. É mais uma teoria que não pára em pé.

Um outro livro, muito famoso, nos ensina a separar quem realmente luta por justiça de quem diz lutar por justiça enquanto exerce poder de forma autoritária. “Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores. Vocês os reconhecerão por seus frutos. Pode alguém colher uvas de um espinheiro ou figos de ervas daninhas?
Semelhantemente, toda árvore boa dá frutos bons, mas a árvore ruim dá frutos ruins. A árvore boa não pode dar frutos ruins, nem a árvore ruim pode dar frutos bons.”
 Há muitos discursos que parecem ser bem intencionados, mas não custa olhar os frutos. Afinal, dizem que o lugar onde mais tem boas intenções não é exatamente um paraíso.

Foto de perfil de Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

Be the first to comment on "Patrulha da linguagem: militância dá tiro pela culatra"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*