Ao contrário de todas as outras prorrogações dos trabalhos da força-tarefa da Lava Jato, desta vez a maior operação contra a corrupção da história do país ganhou uma sobrevida de apenas quatro meses, por decisão do procurador-geral da República, Augusto Aras. A medida destoa bastante das prorrogações anteriores – mesmo Raquel Dodge, que teve sérios atritos com os procuradores de Curitiba quando chefiou a PGR, renovava os trabalhos por mais um ano quando venciam as autorizações para o funcionamento da força-tarefa.
Oficialmente, a alegação é de que as unidades do Ministério Público Federal que cederam membros para a Lava Jato têm cada vez mais dificuldade de abrir mão dos profissionais, graças a limitações de pessoal e orçamentárias. Mas não podemos deixar de questionar se o procurador-geral, cujas críticas à Lava Jato são bastante conhecidas, não estaria apenas preparando um fim da operação em fogo brando.
Há perguntas sobre o maior esquema de corrupção da história do país que ainda é preciso responder, e enquanto elas não tiverem resposta o trabalho da Lava Jato se fará necessário
É verdade que o teto de gastos impõe limitações, mas há um critério objetivo muito mais válido para analisar se a força-tarefa da Lava Jato precisa ou não ser prorrogada: o trabalho está concluído? O procurador Júlio Noronha, membro da equipe, afirmou em entrevista à Gazeta do Povo que há 400 investigações em andamento e que o último ano foi de recordes em vários aspectos, como cooperação internacional e recuperação de valores desviados. Com o fim da força-tarefa, tudo isso deixaria de contar com a dedicação exclusiva de uma equipe para, na melhor das hipóteses, se transformar em apenas mais um assunto dentre tantos outros que caberiam a uma futura unidade centralizada anticorrupção, idealizada por Aras.
Aqui, é preciso desmontar uma falácia dos que atacam uma suposta “eternização” da Lava Jato. Ela não é, nem nunca pretendeu ser, monopolizadora do combate à corrupção no país – felizmente há muitos outros profissionais dedicados nos Ministérios Públicos e polícias Brasil afora empenhados em diversas investigações. Também não é, e nunca pretendeu ser, permanente. Mas o que ela desvendou é nada menos que o maior esquema de corrupção da história do país: um conluio chefiado pelo PT, com a participação de vários outros partidos políticos e empreiteiras, para saquear estatais (começando pela Petrobras, mas indo muito além dela) e fraudar contratos com o objetivo de abastecer projetos de poder. Cada investigação, cada delação, cada acordo de leniência mostrava que havia fios soltos por todos os lados, e que era preciso puxá-los. Hoje o país tem uma boa noção do que foi esse esquema, mas há perguntas que ainda é preciso responder, e enquanto elas não tiverem resposta o trabalho da Lava Jato se fará necessário. Do contrário, corre-se o risco de fazer da operação mais uma obra inacabada como tantas outras que o Brasil se acostumou a ver.
E, se o futuro da Lava Jato segue incerto apesar da prorrogação, nem mesmo seu passado está a salvo – e talvez isso seja ainda mais preocupante que as perspectivas para a continuação da força-tarefa. Continua em curso no Supremo Tribunal Federal um processo que pode arruinar, na “menos pior” das hipóteses, boa parte dos resultados da operação – e, na pior, pode destruir completamente um trabalho de seis anos. Trata-se da suspeição do ex-ministro e ex-juiz federal Sergio Moro no caso em que o ex-presidente Lula foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro pelo tríplex do Guarujá. Na Segunda Turma, onde o processo está sendo julgado, já há dois votos contrários à suspeição, de Edson Fachin e Cármen Lúcia. Outros dois membros, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, já deixaram muito claro que votarão pela suspeição. O desempate caberia a Celso de Mello, que está para voltar de licença médica e se aposenta no fim do ano. Se Mendes recolocar o tema na pauta sem a presença do decano, bastariam dois votos para anular a condenação de Lula e criar um precedente que poderia levar a muitas outras anulações.
Diante de uma perspectiva tão grave, é tão preocupante quanto inexplicável o silêncio de amplos setores que até há pouco tempo estavam entre as principais vozes na crítica à roubalheira. Sob o manto de uma discussão formal ou técnica, esconde-se uma ameaça à Lava Jato maior que o circo do Intercept, maior que a Lei de Abuso de Autoridade, maior que o desmonte do pacote anticrime, maior que as condenações contra Deltan Dallagnol no CNMP. Bem sabemos que há alas do bolsonarismo – movimento que nasceu movido por uma profunda rejeição à ladroagem petista, entre outros fatores – ainda ressentidas com o que consideram uma saída desleal de Moro do governo, em abril deste ano. Mas o que está em jogo aqui vai muito além de uma posição “pró-Moro” ou “anti-Moro”: trata-se de sair em defesa não do ex-juiz e ex-ministro, mas da Lava Jato e do fim da impunidade para a quadrilha que saqueou o país por anos a fio. Neste momento em que o combate à corrupção pode sofrer um golpe mortal pelas mãos da suprema corte, calar é consentir.
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