Deputados usam dramas de pacientes para legalizar maconha, diz secretário de Bolsonaro

Em repúdio ao substitutivo ao projeto de lei 399/15, que trata do cultivo da maconha em território brasileiro e que tem movimentado diferentes frentes em um debate acalorado, o médico Quirino Cordeiro Júnior, secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, afirma que parlamentares estariam se aproveitando de dramas pessoais de pacientes. A proposta no Congresso é de autoria do deputado Luciano Ducci (PSB-PR).

“O governo se preocupa, sim, com o acesso ao tratamento adequado para esses pacientes. Mas repudia veementemente o comportamento vergonhoso de alguns parlamentares que se escondem atrás de verdadeiros dramas pessoais de pacientes e famílias para defender a legalização da maconha no país”.

Para o secretário, como ocorreu na comunidade internacional, a defesa do uso terapêutico da maconha é utilizada como estratégia inicial de sensibilização à população, rumo à flexibilização do uso recreativo da planta. Iniciativas dessa natureza, segundo ele, promovem a diminuição da percepção de risco dos graves problemas ocasionados pela droga e omitem os danos irreversíveis.

Mesmo com os critérios de segurança propostos pelo substitutivo, a permissão para o cultivo da planta em larga escala dificultaria a fiscalização, aponta o médico. O que poderia, facilmente, encobrir o plantio da Cannabis destinado ao tráfico de drogas.

À Gazeta, o secretário também aponta as evidências tidas como pífias sobre os potenciais benefícios medicinais da planta. Ele ainda lembra que o governo e a Anvisa já deliberaram sobre o tema e, nos últimos meses, têm trabalhado para facilitar o acesso dos pacientes aos produtos.

Quirino Cordeiro Júnior é doutor em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Leia a íntegra da entrevista:

Secretário, como a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania se posiciona como relação à proposta de substitutivo? A proposta fala em uso medicinal e industrial, mas há brecha para o uso recreativo e, portanto, o tema passa a ser da alçada da pasta?

Quirino: O projeto de lei, em sua versão atual, tem como objetivo claro a legalização da maconha no Brasil. O governo é absolutamente contrário à aprovação do PL, apresentado inicialmente em 2015. Na ocasião, ele previa apenas a regulamentação de medicamentos à base de Cannabis. Esse era o foco. Entretanto, há algumas semanas, o deputado Paulo Teixeira apresentou um substitutivo [de autoria do deputado Luciano Ducci] que modificou completamente a proposta original.

Os parlamentares que têm advogado em favor do PL têm se utilizado de uma retórica falsa. Criaram uma narrativa que não tem sustentação na realidade, isso é, a de que o projeto facilitaria o acesso das pessoas que precisam dos derivados de Cannabis para fins medicinais. A forma como o substitutivo foi colocado, contudo, revela que não é para isso que ele veio.

Há dois principais grupos de interesse querendo a aprovação desse PL: o ideológico, formado por grupos à esquerda, que em suas plataformas políticas defendem a liberação da maconha. O segundo grupo de interesse é muito forte, ligado ao lobby da criação de um grande mercado da maconha no Brasil. Nenhum desses dois grandes grupos está realmente preocupado com a saúde das crianças. Eles simplesmente estão se escondendo atrás desses argumentos para liberar a maconha no país. Se for aprovado, ele trará uma série de problemas para toda a sociedade.

Quais problemas especificamente o senhor identifica, secretário?

Por exemplo, ele passa a permitir o cultivo de maconha em larga escala, o que levaria à total impossibilidade de fiscalização do processo, aumentando muito a oferta da maconha para a população de maneira completamente descontrolada.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) publicou uma nota técnica justamente informando essa situação. O plantio como é previsto no documento levaria à total falta de possibilidade de controle do processo. É um grande risco de inundarmos o país com maconha.

O que o governo tem feito em termos de fiscalização? E, na prática, quais seriam as dificuldades de controle, caso aprovado o PL?

Precisamos atentar para um ponto bastante pernicioso do projeto, que levaria à grande dificuldade de termos política de controle da situação. Tanto a produção da maconha em larga escala como a possibilidade de produtos para fins não medicinais levariam ao aumento muito grande da oferta.

O Brasil tem batido recordes sucessivos de apreensão da droga. Apenas na semana retrasada, houve apreensão de 33 toneladas de maconha, a maior de todos os tempos. Em 2019, os países que fazem parte da UNODC, escritório da ONU para Drogas e Crimes, reportaram a apreensão de 5,1 mil toneladas de maconha. Apenas no primeiro semestre de 2020, de acordo com relatório do MJSP, houve apreensão de mil toneladas de maconha no país. Isso se deve, em grande parte, porque o Brasil faz divisa com os maiores produtores de drogas no mundo. No caso da maconha, o Paraguai. Ou seja, o Brasil já é inundado de droga ilegal, inclusive, infelizmente, já temos produção ilegal no Brasil, principalmente no polígono da maconha, localizado na região Nordeste, principalmente em Pernambuco.

Já temos grande dificuldade de lidar com a situação e, se liberarmos o plantio em larga escala, fatalmente teremos um aumento muito grande da oferta e será ainda mais difícil. Parte da produção, infelizmente, pode ser destinada ao desvio, ao tráfico. Fatalmente, o PL contribuirá para o aumento do narcotráfico no país.

Já temos grande dificuldade de controlar a droga que circula no mercado ilegal. Em que pese todo o trabalho de grande qualidade das polícias, temos dificuldade de efetivo. Dessas drogas que mencionei, cerca de 70% foram apreendidas pelas polícias estaduais. A dificuldade de fiscalização das plantações tem sido apontada por vários estudos feitos por áreas temáticas do governo.

O que as evidências apontam sobre o uso de derivados da Cannabis para fins medicinais? O tema é pacificado na ciência?

Hoje, as evidências científicas que existem apontam apenas para o uso medicinal do canabidiol, e é um uso muito restrito, para o controle de crises convulsivas e epiléticas em pacientes na infância e adolescência. E apenas quando esses quadros não respondem a outros tratamentos. As principais entidades médicas – como Conselho Federal de Medicina, Associação Brasileira de Psiquiatria, Academia Brasileira de Neurologia – afirmam isso. Das centenas de derivados da Cannabis, elas consentem com a administração apenas do canabidiol, e para uso compassivo.

Com essa proposta, contudo, há brecha para uso medicinal irrestrito. Isso significa que os médicos não precisariam se ater às recomendação de entidades médicas. Eles poderiam receitar canabidiol para outras condições clínicas, além de prescreverem outros componentes da maconha, como o THC, que, sabidamente, não tem ação terapêutica, mas causa dano cerebral.

Se tivermos a possibilidade de registro de derivados de Cannabis com altos teores de THC, além de isso poder causar problemas para usuários terapêuticos, pode abrir brecha para que pessoas que não apresentam doenças clínicas obtenham receitas para medicações com alto teor da substância, com o objetivo de utilizarem de maneira não terapêutica, mas entorpecente. Teremos grande dificuldade de controle.

Nos EUA, por exemplo, vários estados que liberaram derivados da maconha para uso medicinal irrestrito hoje enfrentam grandes problemas, pois dependentes acabam se valendo dessa brecha para adquirir produtos com alta dose de THC e utilizá-lo como droga.

O senhor, além de atual secretário, faz parte da comunidade médica. Tendo em vista que entidades médicas não aprovam categoricamente o uso, profissionais de saúde que prescreverem as substâncias poderiam estar sujeitos à medida disciplinar?

Sem dúvida. Os profissionais já estão sujeitos a medidas disciplinares se não cumprirem normativas impostas pelo CFM em qualquer outra área. Nós não precisamos de uma lei federal para regulamentar o trabalho médico, porque há um sistema organizado para isso, encabeçado pelo CFM. Se a lei for aprovada, médicos podem ser alvo de sanções disciplinares por parte do conselho.

Defensores da proposta alegam que cultivar a planta no Brasil teria melhor custo benefício para as pessoas que precisam do medicamento, pois, segundo eles, diminuiria o alto custo. Como o senhor vê isso?

O governo brasileiro e a Anvisa estão, sim, preocupados com a facilitação do acesso ao medicamento, buscando a redução do preço. Após a publicação das resoluções 327 (em dezembro de 2019) e 335 neste ano, a qual facilita a importação, tivemos ainda a fabricação de produto derivado de Cannabis no Brasil. Há um laboratório localizado no Paraná que, com o aval da Anvisa, está produzindo produtos à base da canabidiol. Já começamos a produção em território nacional.

Ainda nessa linha de redução de preço e barreiras de acesso ao produto, contra o argumento de que precisamos plantar no Brasil para diminuir preço, o Ministério da Saúde anunciou que está em curso o processo de incorporação do canabidiol no SUS, para oferta gratuita a pacientes. A expectativa é de que isso possa acontecer o quanto antes.

Várias ações estão sendo tomadas para garantir o acesso ao medicamento a quem precisa. O governo se preocupa, sim, com o acesso ao tratamento adequado para esses pacientes, mas repudia veementemente o comportamento vergonhoso de alguns parlamentares que se escondem atrás de verdadeiros dramas pessoais de pacientes e famílias para defender a legalização maconha no país.

Isso é garantido a outros laboratórios também, correto?

Qualquer laboratório pode produzir, basta que siga as recomendações da Anvisa. Estamos falando de produtos para fins terapêuticos que precisam, durante a produção, obedecer a todos os critérios de qualidade. Há, por outro lado, pessoas que advogam pela produção dos derivados de Cannabis fora de empresas farmacêuticas, isso é, o direito de plantar em casa para produzir óleos, chás, etc.

O quanto isso é perigoso, já que é preciso ter conhecimento da planta e capacidade de manuseio para ter qualidade do produto?

Isso é extremamente perigoso. Quando se produz qualquer produto para fins terapêuticos, precisamos levar em consideração todo o processo de qualidade. Pois isso será usado para o tratamento de pessoas que se apresentam doentes.

É importante ficar claro: quando os produtos são feitos em casa, não se consegue ter a qualidade na produção, e isso poderia resultar em derivados com altos teores de THC. A substância não apenas não tem efeito terapêutico, mas pode ter ação de lesão no sistema nervoso central.

Como é feita a separação do THC dos outros componentes?

Quando se faz óleos de Cannabis, não é possível separar. Só é possível fazer isso em laboratórios, empresas farmacêuticas.

Em nenhuma hipótese? O senhor afirma, então, que todas as famílias que cultivam em casa estão produzindo itens com altos teores de THC, responsável pelos efeitos psicoativos e danosos ao sistema nervoso central?

Sim. E isso pode resultar em prejuízo aos filhos. É muito sabido na literatura que o THC é capaz de causar danos. A maior parte das pessoas que têm indicação para o uso terapêutico são crianças e adolescentes com crises convulsivas de difícil controle. Elas precisam ter acesso aos produtos fabricados sob todo o controle rigoroso de uma indústria.

Não dá para imaginar que há segurança quando uma mãe planta maconha em casa e faz óleo para tratar seu filho. Não existe o menor padrão de segurança nisso. Podemos, sim, submeter crianças já doentes a problemas ainda mais sérios quando utilizados esses óleos de fabricação caseira. Não dá para achar que seja razoável que pessoas façam caldos de maconha em casa e administrem para os seus filhos. Isso é muito arriscado e precisamos alertar a população.

Há famílias que alegam que o THC é responsável por “fazer a diferença” na vida de seus filhos. Há também profissionais que afirmam que produtos com dose de 10 CBD para 1 THC podem ter benefícios. Os potenciais efeitos do THC são consenso na ciência?

Não existe nenhuma comprovação científica do uso terapêutico do THC. Por conta disso, inclusive, todas as entidades médicas, em especial o CFM, que regulamenta o trabalho médico, aceita apenas o uso do canabidiol, e o uso compassivo. Outras medidas terapêuticas ainda não se mostraram eficazes.

O THC é fator de risco para desenvolvimento de transtornos psicóticos, esquizofrenia, depressão, ansiedade, comprometimento cognitivo, suicídio.

Em políticas públicas, não podemos nos valer de posições que não sejam embasadas cientificamente. Há várias manifestações das entidades médicas ao longo dos últimos anos alertando para esses males. O governo brasileiro tem combatido isso, temos trabalhado para ofertar tratamento de qualidade e sem prejuízo aos pacientes. Por outro lado, projetos como esse, que temos chamado de ‘Cavalo de Troia’, exploram narrativas como a de que ele facilitaria o acesso, mas, basicamente, o que o PL faz é facilitar o acesso da população brasileira à maconha para fim entorpecente e não medicinal. Quanto ao fim medicinal, o governo federal já está fazendo isso.

A proposta também afirma que “devem ser alvo de fiscalização apenas plantas com teor superior a 1%”. Em sua opinião, isso garante segurança?

Não. Se liberarmos a plantação em larga escala, a possibilidade de termos um controle efetivo é muito pequena. Isso significa claramente a liberação da maconha no Brasil. Não há a menor dúvida, por mais que se tente fazer fiscalização em cima disso. Como vamos garantir que todos produzirão com essa finalidade? Como vamos impedir o desvio de finalidade dessa produção em larga escala?

Fatalmente, aumentaremos o poder do narcotráfico. E é o que tem acontecido em vários países que legalizaram a maconha: eles acabaram tendo aumento do consumo, aumento de dependência química, aumento do narcotráfico, aumento da violência, homicídios em decorrência da disputa do mercado ilegal e do encarceramento.

Em quais levantamentos/pesquisa/ dados oficiais a Secretaria se baseia quando apresenta o argumento? Quais impactos isso poderia ter na sociedade?

É facilmente comprovado por pesquisas […] Os estados que legalizaram a maconha têm tido aumento da criminalidade violenta. O impacto se dá em todas as áreas da sociedade, em especial na saúde pública. Em Portugal, por exemplo, houve aumento de 30 vezes de internações em decorrência de transtornos mentais graves provocados pelo uso de maconha. São dados preocupantes e não podemos pensar em aceitar que isso ocorra no Brasil. Nosso cenário já é bastante grave e não podemos permitir que ações legislativas como essa venham a piorá-lo.

Hoje, mais de 1,4 mil entidades brasileiras são contrárias a esse PL. Além de outros órgãos, o Conad, maior instância de discussão e deliberação de políticas públicas sobre drogas no país, e que agrega representantes do governo federal e gestores estaduais, publicou moção de repúdio contra o projeto. As principais entidades brasileiras que trabalham na área de drogas têm se posicionado veementemente contra. 

Não é possível que meia dúzia de deputados – e, inclusive, sabemos que alguns que compõem a comissão especial são defensores históricos da liberação do uso recreativo da maconha – se utilize desse PL como brecha.


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