Arcebispos do Brasil, escutai o papa Francisco quando ele pede #FraternidadeHumana. Escreveu o pontífice no Twitter, neste sábado (22): “Deus não precisa ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas. Peço a todos que parem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego.” Três horas depois, ele complementou a mensagem com mais um tuíte: “Deus não te ama porque te comportas bem; ele simplesmente te ama e basta. Seu amor é incondicional, não depende de ti.”
Se prestarem bem atenção às palavras de Francisco, os arcebispos dom Walmor Oliveira de Azevedo (de Belo Horizonte e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e dom Antonio Fernando Saburido (de Olinda e Recife), entre outros, talvez passem a calibrar melhor suas próprias palavras nas próximas vezes em que forem comentar uma tragédia como a da menina de 10 anos do Espírito Santo que, na semana passada, passou por procedimento para interromper uma gravidez resultado de estupro (violência que ela vinha sofrendo desde os 6 anos de idade).
“Se grave foi a violência do tio que vinha abusando de uma criança indefesa, culminando com violento estupro, gravíssimo foi o aborto realizado em Recife quando todo o esforço deveria ser voltado para a defesa das duas crianças, mãe e filha. Infelizmente, Recife está criando fama de capital do aborto”, disse dom Antônio, referindo-se ao fato de a menina ter sido transferida para Pernambuco para realizar o procedimento, que não pode ser feito em seu estado natal.
“Lamentável presenciar aqueles que representam a Lei e o Estado com a missão de defender a vida, decidirem pela morte de uma criança de apenas cinco meses, cuja mãe é uma menina de dez anos. Dois crimes hediondos”, escreveu dom Walmor.
Os comentários dos arcebispos brasileiros foram uma afronta à vida da menina vítima de pedofilia e às leis brasileiras. Uma afronta à vida da criança por desconsideraram o fato de a gravidez em tão tenra idade ser considerada de alto risco. Uma afronta à lei brasileira pois o Código Penal autoriza o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resulta de estupro. Nesses casos, o Código não menciona sequer um tempo máximo de gestação para a sua interrupção.
Ao falar em “crimes hediondos”, dom Walmor extrapola sua autoridade religiosa e confunde dogmas da Igreja com as leis humanas. Não cabe a ele dizer o que é crime.
Ao classificar o estupro como “grave” e o aborto como “gravíssimo”, por sua vez, dom Antônio coloca a formação do feto acima da vida da mãe. Segundo a ong Save the Children, gravidez é a principal causa de morte entre adolescentes no mundo. A gestação antes de 15 anos é considerada de altíssimo risco para mãe — e, quanto menor a idade, maior é o perigo.
Para quem segue os dogmas católicos, os arcebispos têm autoridade para falar de pecados, não de tipificação de crimes.
A Igreja Católica de fato trata o aborto como um pecado maior do que o estupro. O primeiro é passível de excomunhão. O segundo, se houver confissão, pode ser redimido.
O papa Francisco, sem deixar de considerar o aborto “um pecado grave”, vem mudando a postura da Igreja diante de quem o pratica. Em 2015, por exemplo, ele estendeu aos padres a permissão para absolver as mulheres que tivessem feito aborto. A medida lançou luz sobre a necessidade de dar acolhimento às mulheres que passam por situações traumáticas e que viram no aborto uma alternativa drástica para sair delas.
Em entrevista a uma TV espanhola no ano passado, o papa Francisco respondeu a uma pergunta sobre mulheres que interrompem uma gravidez fruto de um estupro. “É lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema?”, perguntou Francisco à reporter. Ele esclareceu, porém, que entende o desespero das mulheres que passam por esse trauma e que não estava fazendo uma crítica às “leis civis” dos países que autorizam esse tipo de procedimento.
Vale observar que o papa Francisco se referiu especificamente a “moças solteiras”, portanto mulheres jovens, não a uma situação como a da menina do Espírito Santo.
Mas o que realmente importa nas declarações do papa à jornalista espanhola é, primeiro, a sua disposição de entender a dor dessas mulheres e de dar conforto a elas e, segundo, de separar a questão religiosa da questão legal.
Querer fazer das leis divinas as leis dos homens é o primeiro passo para o fanatismo e para o fundamentalismo. Foi exatamente esse objetivo que serviu de desculpa para as atrocidades do Estado Islâmico no Iraque e na Síria. O risco desse tipo de situação não está restrito ao islamismo, é claro. O papa Francisco usou o plural ao pedir, em seu tuíte: “parem de instrumentalizar as religiões”.
As postagens do papa Francisco no Twitter tratam, com muita sensibilidade, de um comportamento comum aos fanáticos: o de disputar entre si quem defende com mais vigor o nome ou a vontade de Deus. Isso é desnecessário e leva ao ódio e à violência, alerta Francisco.
Quando grupos religiosos tentam invadir um hospital para constranger uma menina de 10 anos que está passando por uma situação traumática e que pode lhe custar a vida ou quando arcebispos vão a público apontar o dedo inquisidor contra uma vítima de pedofilia, em vez de dar uma palavra de conforto a ela, acabam por colocar em marcha exatamente o tipo de comportamento extremista — e desnecessário para obter o amor divino — descrito pelo papa Francisco.
Atire a primeira pedra…
Diogo Schelp
Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya). **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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