Existe método por trás dos radicais que expuseram e ameaçaram uma criança abusada
Domingo, 16 de Agosto de 2020. Em frente ao CISAM, hospital e maternidade de Recife, uma massa de homens e mulheres indignados acotovelavam-se em reunião macabra. Os “defensores da vida” — digital influencers, deputados, e fanáticos bolsonaristas — entoavam cânticos e chamavam um médico de assassino. Haviam tentando, sem sucesso, invadir o hospital, interrompidos apenas pela ação da Polícia Militar.
Do outro lado, respeitando as normas de distanciamento social, estavam as “feministas”, em geral estudantes universitárias e militantes progressistas. Defendiam o “direito de escolha”, atacavam o “medievalismo” de seus adversários e juravam garantir que os “defensores da vida” não impediriam o acontecimento. Chegaram depois, mas lá restaram até o fim. Eram “heroínas da causa”.
O pequeno cenário de batalha que ali se desenhava tinha razão de ser: uma menina de dez anos, vítima de estupro de um tio pedófilo, estava prestes a fazer um aborto legal, garantido por decisão judicial, de um feto de quase 6 meses de idade. O procedimento, arriscado, não havia encontrado abrigo em hospitais do Espírito Santo, seu estado de origem; terminou por ser realizado na capital pernambucana, gerando matérias na imprensa e ampla mobilização nas redes sociais.
Reação, primeira, dos ditos “defensores da vida”. E aqui cabe um esclarecimento, antes que eventual patrulha me tire pra Cristo. Sou, pessoalmente, contrário à alterações na legislação atual, visando facilitar o aborto. Respeito também o trabalho educativo de líderes religiosos e grupos de ajuda que buscam evitar o procedimento através da conscientização e o acolhimento de mulheres que desejam abortar. Mas não trato destes, especificamente. Falo, de forma objetiva, dos exploradores da desgraça alheia, que encontram no drama de uma criança uma oportunidade para obter polêmica e dividendos políticos de curto prazo.
Foram estes a mobilizar, inicialmente, massa de militantes para abordar a família da jovem estuprada e pressionar de forma agressiva o médico do caso. O fanático governista Bernardo Küster, de seu Twitter, trazia ao público as “notícias”de bastidores, como “estrategista” de guerra; Sara Winter, a mitômana dos “300” de Brasília, guiava os fiéis com bravatas e convocações. Utilizando-se dos procedimentos clássicos da “viralização patriótica” — o escândalo, o absurdo, a falsa notícia — transformaram o caso no tema político do final de semana. O Brasil deveria impedir o aborto de Recife!
Muitas teses foram aventadas. A principal, por parte da esquadra patriótica, dizia que “era do interesse dos estupradores matar o feto”. Criava-se ali o complô maligno, razão de ser de qualquer teoria conspiratória. A família de pedófilos estupradores era auxiliada por militantes pró-aborto, por um médico satanista e por uma imprensa interessada na morte. Soa risível o estratagema, mas Sara Winter, sua porta voz, sabe o que faz: há gente disposta a militar pela mentira. Involuntariamente.
Pedofilia e Conspiração
O fenômeno QAnon, nos Estados Unidos, segue lógica similar, propondo que existe um complô pedófilo operando dentro do estado americano. Seu inimigo é Donald Trump, e seu plano é, em resumo, facilitar a vida sexual criminosa de grandes figurões democratas — todos adversários do atual presidente. Os ativistas do QAnon tornaram-se a principal base militante do presidente, e as teses conspiratórias que defendem são tratadas como realidade por centenas de milhares de… patriotas.
O enredo já foi importado para o Brasil. A militância governista, que faz de tudo para mimetizar seus amos do norte, já iniciou sua caça às bruxas; o youtuber Felipe Neto, alvo de campanha de difamação por pedofilia, sentiu na pele a armação, que se vale da mentira pura como instrumento de destruição de reputações.
A percepção (acertada) da militância extremista é que uma acusação de tal monta conta com adesão espontânea de setores conservadores da população, que já não confiam na cobertura da grande imprensa e encontram, nas redes, o reduto perfeito para exercer sua caça às bruxas de forma irresponsável. Além disso, os promotores dos linchamentos — youtubers, deputados, influenciadores em geral — ganham adeptos, relevância e dinheiro. É um negócio da China.
Se Sara Winter e os seus saíram perdendo nesta — a opinião pública ficou enojada com seu oportunismo —, o horizonte para outras ações deste tipo é alvissareiro. O histórico recente nos mostra que o Brasil é capaz de importar as piores práticas da política em redes dos Estados Unidos e subvertê-las para versões ainda mais macabras. O uso de pautas conservadoras, convertidas em escândalo recheado de Fake news, cai como uma luva para uma massa de influenciadores que perderam a razão de ser num governo que negou tudo aquilo que pregava. Na falta de argumentos, chamarão a todos de pederastas, depravados e “macumbeiros”.
Duvida? É o recado oficial, em tom de convocação, vindo direto do Palácio do Planalto.
Se há algo pra se extrair dessa gente, é que devemos esperar sempre o pior dos tempos que se aproximam. Na lógica do escândalo nas redes, para se manter a relevância, é necessário ousar no absurdo. Sara Winter, Filipe e os seus entenderam muito bem o recado.
Renan Santos
Renan Santos, nascido em Vinhedo-SP, 35 anos, é ativista político e empresário brasileiro. É conhecido por ser co-fundador e líder nacional do Movimento Brasil Livre (MBL). Foi um dos responsáveis por articular o que ficou conhecido como “Comitê do Impeachment”, que foi formado por líderes dos Partidos e Movimentos para levar à frente o processo de impeachment da então presidente, à época, Dilma Rousseff. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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