Educação sexual na escola. Um caminho – muito menos doloroso – parece ter passado despercebido no debate fervoroso e polarizado a respeito da criança de 10 anos vítima de estupro desde os 6 e que, no último domingo, abortou um bebê de 5 meses.
Uma educação sexual escolar que respeite o desenvolvimento físico, psicológico, afetivo, cognitivo e, sobretudo, sexual de uma criança oferece ferramentas e caminhos para diagnosticar possíveis abusos ou, através de denúncia, interrompê-los. No caso da menina de 10 anos, foi “tarde demais”.
É importante ter em conta, em um primeiro momento, que o termo “educação sexual” tem sido, muitas vezes, equivocadamente interpretado. Há pessoas que costumam associar à terminologia, rapidamente, imagens de professores ensinando alunos do ensino fundamental a colocar camisinhas em órgãos sexuais ou, por exemplo, aulas sobre “como fazer sexo”. Embora (e infelizmente) exemplos como esses tenham realmente ocorrido, não é disso que se trata a verdadeira educação sexual.
“É preciso saber o que é, de fato, educação sexual. Muitas famílias são resistentes ao tema ser tratado em escolas porque, muitas vezes, não sabem do que se trata”, afirma a psicóloga especialista em educação sexual Leiliane Rocha, que estuda o tema há mais de 15 anos. “Além disso, a grande maioria dos professores não tem capacitação para abordar o tema nas escolas. Falta um debate sério, centrado”.
Por que é importante abordar o tema na escola?
Especialistas concordam, de modo geral, que o tema deve começar a ser abordado em casa, da maneira como parecer conveniente aos pais e de acordo com valores familiares. Os dados, contudo, apontam para uma conjuntura preocupante.
Mapeamento de 2019 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) aponta que pelos menos 40% dos crimes de violência sexual infantil no país foram cometidos por pais ou padrastos. Ainda, 14% dos crimes dessa natureza foram cometidos pelas mães das vítimas, 9% pelos tios, 7% por vizinhos e os outros 30% dos casos são de responsabilidade de “outros”. Pelo menos 73% dos crimes de violência sexual infantil aconteceram na casa da própria vítima, e as autoridades estimam que apenas 10% dos crimes são denunciados.
Em pesquisa do Datafolha de 2019, além disso, 54% da população brasileira disse ser favorável à educação sexual nas escolas.
“O ideal, do qual estamos muito longe, é que tudo seja ensinado pela família. Mas é fundamental e imprescindível, principalmente pelo que os dados mostram, que escola seja corresponsável”, afirma Lélia de Melo, psicóloga clínica, especialista em Educação Especial, Neuropsicologia e Desenvolvimento Pessoal e Familiar. “A escola também é responsável pela humanidade das crianças, não apenas pela parte intelectual”.
Leiliane corrobora e afirma que a escola é o ambiente onde os filhos mais manifestam sua sexualidade: “A família é soberana na educação sexual, mas não pode ser a única a tratar do tema. Apenas a família não dá conta, pois os filhos permanecem na escola grande parte do tempo e é lá onde as crianças mais manifestam sua sexualidade”.
“E, afinal, todo mundo está educando a sexualidade das nossas crianças – a televisão, a internet, as propagandas. Mas que educação estão oferecendo? É inevitável que a escola ofereça uma educação sexual, mas com capacitação e qualidade, adequadamente”, diz ela.
A recusa por parte das instituições em abordar o tema – visto como tabu – ou, até mesmo, de denunciar às autoridades casos de violência sexual, tem sido uma porta facilitadora para os abusadores.
“Há muitos profissionais de educação que não sabem lidar com o tema. E quando há casos que ocorrem no ambiente escolar ou que os professores ficam sabendo, muitas instituições o ‘abafam’ para não escandalizar o nome das escolas”, conta Leiliane. “Já chegaram até mim casos em que a escola preferiu não tocar no assunto porque a família da vítima era muito rica, ou porque o pai era traficante e falou que mandaria matar quem o denunciasse. E a criança continua sendo abusada. Se adultos têm medo dos abusadores, as crianças muito mais”.
“Os abusadores estão 10 anos na nossa frente, agindo tranquilamente, livre de qualquer pena. Nosso silêncio cala crianças diante do abuso, e o silêncio é o principal combustível para essa violência sexual perdurar. Impressiona como os abusadores conseguem calar a todos, principalmente às escolas”.
Afetividade
As especialistas sugerem que instituições de ensino trabalhem no ambiente escolar desde muito cedo, e de forma sistemática em lugar de sazonal, a abordagem da autodefesa, a fim de que alunos sejam capazes de identificar um possível abusador e denunciá-lo. O tema também faz parte da educação sexual, mas pode ser abordado sob a ótica da “afetividade”. Ainda, assuntos como reprodução sexual, segundo as especialistas, não devem ser abordados na educação infantil.
“Embora muitas pessoas pensem que não, é possível trabalhar o tema já na pré-escola. No maternal, durante a troca de fralda, por exemplo, as professoras podem conversar com as crianças, pedir licença para limpar as partes íntimas da criança, explicar que outras pessoas não podem tocá-la, e ressaltando que o corpo pertence a ela, comunicando sobre intimidade”, sugere Leiliane.
Segundo Lélia, “é preciso falar, por exemplo, quais partes do corpo da criança qualquer pessoa pode tocar e quais partes não podem, mesmo as outras crianças. Por exemplo, é possível tocar na cabeça, tocar no ombro, tocar no braço. Mas elas precisam entender que outra pessoa não pode tocar em suas partes íntimas. Isso também é educação sexual e pode ser ensinado desde a pré-escola”.
Abordar o tema e comunicar famílias poderia, também, alertar supostos abusadores. “Isso deixa abusadores mais temerosos, é um recado dizendo que estamos de olho. Dá um choque amplo, todos se incomodam”, continua Lélia.
“É preciso ensinar às crianças a não permitir maior intimidade com determinadas pessoas. Precisamos dar ‘poder’ para a criança dizer não e fugir da situação”, afirma ela. “Normalmente, abusadores vão conquistando as crianças, eles são muito sedutores. A criança pode permitir um abuso por receio, medo ou por engano. O adulto sempre passa a impressão de que sabe mais do que ela”.
“Nossa indignação sem ação não salva uma criança”
“Nossa indignação sem ação não salva uma criança. Precisamos sair dessa indignação, pois, se não fizermos nada, esse caso passará e será esquecido, como já foi esquecido o menino esquartejado por duas mulheres e tantas outras crianças que sofreram”, afirma Leiliane.
Uma das primeiras ações a serem tomadas, ela aponta, seria a adequação dos currículos do ensino superior. “É preciso mudar na base, nas grades curriculares de pedagogia, de psicologia, da assistência social. Não se trabalha esse assunto nas faculdades que formam profissionais. E, se eles não estão preparados, muito menos estarão os pais”.
“Estamos atrasados na iniciativa de defender essas crianças”, diz Lélia. “Esse é um drama que não é pequeno. É muito nefasto e vem crescendo. E é justamente a escola, que agrega família, que deveria ser corresponsável. E tem que ser preventivo, não adianta oferecermos tratamento depois. Isso é desumano”.
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