Deltan Dallagnol, Celso de Mello e a exemplar defesa da liberdade de expressão

Duas vitórias de caráter provisório, mas fundamentais para resguardar a independência e a liberdade de expressão dos membros do Ministério Público, impediram que o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, acabasse punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em virtude de suas manifestações – contundentes, sim, mas respeitosas e acertadas – sobre o combate à corrupção no Brasil.

Dallagnol seria julgado nesta terça-feira em um processo disciplinar aberto por comentários feitos quando Renan Calheiros (MDB-AL) disputou a presidência no Senado, no início deste ano. Além disso, o CNMP também analisaria um pedido feito pela senadora Kátia Abreu (PP-TO) para que o procurador fosse removido da Lava Jato “por interesse público”. O ministro Celso de Mello, do STF, mandou suspender liminarmente ambos os julgamentos. Algumas horas antes, outro ministro do Supremo, Luiz Fux, já havia determinado que a advertência já recebida por Dallagnol em outro processo disciplinar, no ano passado, não deveria ser considerada como agravante caso o procurador recebesse nova punição no CNMP.

O caso de Dallagnol cumpria os dois requisitos básicos para decisões liminares: havia risco enorme caso o Supremo demorasse a agir, e o pedido do procurador era perfeitamente razoável, visando salvaguardar direitos básicos. As duas decisões descrevem o que ocorre quando muitos agentes públicos se deixam levar por paixões e antagonismos em vez da análise fria dos fatos e da obediência às regras: atropela-se tanto as formalidades processuais quanto as liberdades básicas dos cidadãos.

Que as palavras de Celso de Mello sirvam de guia não apenas ao próprio CNMP, mas a todos os demais agentes públicos em posição de autoridade

No aspecto processual, Fux considerou “relevante” a alegação da defesa de Dallagnol sobre a punição de advertência em razão de entrevista na qual o procurador criticou decisões do STF tomadas com votos dos ministros Dias ToffoliRicardo Lewandowski e Gilmar Mendes. De acordo com Dallagnol, o processo deveria ter sido arquivado por prescrição, pois a decisão ocorreu mais de um ano após a abertura do processo.

Já Celso de Mello, chamado a se pronunciar sobre os processos em curso, apontou uma série de problemas. O pedido de remoção feito por Kátia Abreu por si só já violava o princípio do “promotor natural”, que garante a inamovibilidade do membro do MP exceto em casos de flagrante e justificada necessidade, e o protege contra interferências políticas. Além disso, o devido processo legal foi violado quando Dallagnol não teve oportunidade de se defender, e todas as condutas que Kátia Abreu alega para pedir o afastamento do procurador – caso, por exemplo, das palestras remuneradas – já haviam sido analisadas em ocasiões anteriores pelo CNMP e pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF), que não haviam visto problema algum. Retomar o tema, portanto, seria uma violação de outro princípio, o do “non bis in idem” – em resumo, a previsão de que ninguém será julgado duas vezes pelo mesmo fato. Celso de Mello também verificou a violação do devido processo legal e do “non bis in idem” no processo disciplinar aberto a pedido de Calheiros.

Mas o decano do Supremo não se ateve apenas às questões processuais, já suficientes para impedir o julgamento marcado para este dia 18. Celso de Mello foi ao ponto fundamental de toda a controvérsia que envolve as manifestações de Dallagnol, inclusive aquela que lhe rendeu a advertência de 2019: o direito fundamental à liberdade de expressão, que, nas palavras do ministro, “destina-se a proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções prevalecentes, em determinado momento histórico, no meio social ou na esfera de qualquer instituição, estatal ou não”, impedindo que essa pessoa sofra “qualquer tipo de restrição de índole política, de caráter administrativo ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser igualmente livres para exprimir ideias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante”.

Citando outro julgamento no qual foi relator, Celso de Mello lembra que “o direito de criticar, de opinar e de dissentir, qualquer que seja o meio de sua veiculação, representa irradiação das liberdades do pensamento, de extração eminentemente constitucional”, e afirma que o limite a essa liberdade está apenas no campo do direito penal, quando ocorrem crimes contra a honra ou outros como a incitação ao crime ou a ameaça. Acrescenta, ainda, que “a crítica dirigida a pessoas públicas (como as autoridades governamentais, os candidatos ou titulares de mandatos eletivos), por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade”.

Por fim, ainda que não analise especificamente as manifestações de Dallagnol a respeito da eleição para a presidência do Senado, Celso de Mello faz uma defesa contundente da independência do Ministério Público, e não dá margem a dúvidas quando afirma que “qualquer medida que implique a inaceitável proibição ao regular exercício do direito à liberdade de expressão dos membros do ‘Parquet’ revela-se em colidência com a atuação independente e autônoma garantida ao Ministério Público pela Constituição de 1988”.

É um voto exemplar. Celso de Mello fez uma defesa da liberdade de expressão não apenas em termos gerais, mas ressaltou duas circunstâncias em que tal liberdade se reveste de especial importância: a manifestação daquelas opiniões que desagradam os donos do poder, e a importância de garantir aos membros do MP o direito de se manifestar como um reflexo da independência de que o órgão deve gozar. Que essas palavras sirvam de guia não apenas ao próprio CNMP, mas a todos os demais agentes públicos em posição de autoridade, e que especialmente nos últimos tempos se veem diante da tentação de calar ou censurar.

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