Aborto em Recife: Como o conflito entre barbárie e boçalidade não salva nenhuma criança

Criança norte-americana três semanas depois de um parto com 21 semanas de gestação, em estágio de desenvolvimento semelhante ao da bebê da menina capixaba de 10 anos.| Foto: Reprodução Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/como-conflito-barbarie-bocalidade-nao-salva-crianca/ Copyright © 2020, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.

Uma bebê com cinco meses de gestação, com o corpo totalmente formado e com chances de sobrevivência caso viesse à luz, foi morta neste domingo (16) por meio de um procedimento cirúrgico no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE), em Recife (PE), depois da autorização de um juiz de São Mateus (ES). Sua mãe, uma criança de dez anos que era estuprada por seu tio desde os seis, correu maior risco de morte e terá mais traumas físicos com o procedimento do aborto do que se tivesse se submetido a um parto por cesariana, segundo médicos ouvidos pela Gazeta do Povo.

Também no domingo, a menina teve seu nome divulgado nas redes sociais. Diante das barbáries do aborto de uma criança e do estupro de outra, a ativista Sara Winter, líder do movimento conhecido como “300 do Brasil”, reagiu com boçalidade: fez uma postagem no Twitter divulgando a identidade da menina e o endereço do local onde ela estava. O tuíte provocou indignação nas redes sociais.

No mundo concreto, militantes pró-vida se reuniram na entrada do hospital, motivados principalmente pelas circunstâncias esdrúxulas da autorização dada pelo juiz: o aborto, segundo uma definição da Organização Mundial da Saúde (OMS) adotada internacionalmente, só pode ocorrer – nos casos em que não for crime – até as 22 semanas de gestação (ainda que o Código Penal brasileiro, em seu artigo 128, não estipule um prazo para não penalizar o aborto em casos de estupro). A bebê havia acabado de completar 23 semanas de gestação no domingo, segundo médicos que acompanham o caso. Além disso, um laudo médico apontava que a gestação não colocava em risco a saúde da menina de 10 anos.

Segundo informações de pessoas que estavam presentes na entrada do hospital, alguns dos manifestantes só rezavam, procuravam informações sobre a situação da menina e manifestavam-se pacificamente, mas outros gritavam “assassino” ou “assassina” para agentes de saúde que passavam (contudo, os presentes do movimento pró-vida garantem que os gritos de “assassina” não se dirigiam à menina, como afirmaram alguns veículos de imprensa).

Membros de movimentos feministas também chegaram ao local, e um conflito se estabeleceu. Os grupos se hostilizaram e começaram a gravar vídeos que foram divulgados nas redes sociais. Um deles mostra parlamentares pernambucanos tentando entrar no hospital (essas tentativas têm sido comuns desde o início da pandemia do coronavírus, e se tornaram motivo de polêmica depois que o presidente Bolsonaro as incentivou durante uma live), mas são impedidos pela polícia, o que aumenta a agitação.

“Missão cumprida”, diz médico. Menina tem “esvaziamento”, entre contrações e cólicas

A menina é de São Mateus, no norte do Espírito Santo, mas foi levada para o Recife, capital de Pernambuco, depois que médicos de um hospital de Vitória (ES) se recusaram a fazer o aborto, pelo fato de a gravidez não ter intercorrências e por afirmarem ser menos invasivo para a menina ter a criança ao invés do traumático procedimento da interrupção da gravidez. Mesmo assim, o procedimento foi autorizado por uma decisão do juiz Antonio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus.

Desde o domingo (16), a menina está internada no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam-UPE), que fica no bairro da Encruzilhada. Ao longo do dia diversas pessoas se manifestaram, a favor e contra o procedimento médico.

O aborto foi tratado com frieza pelos agentes de saúde responsáveis. Depois do procedimento, o gestor executivo e diretor do Cisam, o médico Olímpio Barbosa Filho afirmou que tem “certeza de missão cumprida”, porque acredita que “as mulheres precisam e podem viver uma vida saudável, sem violência e com liberdade”.

A coordenadora de enfermagem do Cisam, Maria Benita Spinelli, explicou a técnica ao jornal O Estado de S. Paulo: “Se faz um primeiro procedimento, que é o óbito fetal, e em seguida dá continuidade ainda com o uso de alguns medicamentos, para o desencadeamento do aborto, da expulsão do feto”.

A bebê, também uma menina, teria seu corpo retirado da barriga da mãe nesta segunda (17). “Ontem mesmo foi procedido o óbito fetal, então não tem mais vida, o feto. E hoje vamos proceder com o esvaziamento, que é para causar contrações para expulsão do feto. E esperamos, a partir de amanhã, em algum momento, que ela tenha condições de alta”, afirmou Barbosa.

Questionado pelo jornal O Estado de S. Paulo sobre o estado de saúde da menina, o médico disse que ela está bem. “Ela está bem, com apoio psicológico, assistência social e a avó. Está tendo algumas contrações, cólicas, mas está bem”, afirmou.

Aborto é mais perigoso que parto a partir do quinto mês, diz especialista

A ginecologista e obstetra Elizabeth Kipman, coordenadora nacional de Bioética do Movimento da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, explica que o aborto provocado se torna mais complicado quanto maior o tempo de gestação.

O procedimento, segundo ela, começa com a morte do bebê dentro do útero. “Primeiro se mata o nenê atravessando uma agulha comprida pela barriga da mãe. Atravessa o útero até chegar ao coração do nenê. O nenê foi morto com uma injeção de cloreto de potássio”, diz.

Kipman explica que, depois da morte do bebê, o trabalho de parto não começa imediatamente – demora entre 24 e 48 horas. “Eles tiveram que forçar, induzir”, diz. “Depois dos três meses, a partir do quarto mês, isso vai ficando mais perigoso. E, depois do quinto mês, é mais perigoso fazer um aborto provocado do que o parto.”

Especialistas confirmam que parto seria menos traumático

O juiz Antonio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus, município no norte do ES onde a menina mora, deu aval ao aborto alegando que isso ajudaria a preservar a vida da vítima. Mas especialistas médicos contrariam essa visão.

Marcus Cavalheiro, médico especializado em ginecologia e obstetrícia, diz que o risco associado ao parto não justifica o aborto. “É uma gestação de risco, mas é um risco controlável. Há dificuldade para um parto normal, porque não tem maturidade na bacia, mais provável que se faça uma cesária. É um risco relativo, mas é um risco controlável. Ela não está condenada à morte porque está grávida com dez anos. A obstetrícia está bem desenvolvida para lidar com os riscos”, diz.

Elizabeth Kipman explica que algumas diferenças em relação a outros grupos se devem ao fato de que, na maioria das vezes, grávidas em idades tão precoces estão fazendo um parto pela primeira vez. “Elas têm mais tendência, porcentagem um pouco maior, a subidas de pressão, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, como toda primigesta, como toda gestante que faz um parto pela primeira vez. Em geral, essas meninas fazem um parto pela primeira vez. Com um controle adequado de pré-natal, isso não leva a um risco maior”, diz.

Kipman menciona diversos artigos científicos que evidenciam essa opinião. Em um artigo de 2006 publicado na Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, por exemplo, os autores chegaram à conclusão de que “as gestantes adolescentes precoces e tardias apresentaram evolução da gestação e desempenho obstétrico semelhantes”.

No caso, a menina não teria de esperar os nove meses para fazer a cesária. Os médicos poderiam fazer o parto nas próximas semanas, preservando as duas vidas.

Histórico do caso

A menina de 10 anos engravidou no começo deste ano após ter sido estuprada em São Mateus, município localizado no norte do Espírito Santo. No dia 13, a Polícia Civil fez buscas no Estado e também na Bahia onde o tio da criança, de 33 anos, suspeito pelo crime, tem familiares. Ele não foi localizado e é considerado foragido.

Segundo o delegado Leonardo Malacarne, responsável pelo caso, o tio fugiu após a divulgação do caso e de sua foto nas redes sociais.

O caso se tornou público depois que a menina deu entrada no Hospital Roberto Silvares, em São Mateus, se sentindo mal. Enfermeiros perceberam que a garota estava com a barriga estufada, pediram exames e detectaram que ela estava grávida de cerca de 3 meses.

Em conversa com médicos e com a tia que a acompanhava, a criança relatou que o tio a estuprava desde os 6 anos. Ela disse que não havia contado aos familiares porque tinha medo, pois ele a ameaçava.

“Contamos com o apoio de todos os policiais, bem como a presteza do Conselho Tutelar do município e das assistentes sociais, o que possibilitou que todas as fases do procedimento fossem céleres. Foram feitas oitivas de todos os familiares e profissionais envolvidos no caso e a vítima também passou por avaliação do médico perito da Polícia Civil”, disse Malacarne. A investigação foi conduzida pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) em razão de a lei de violência doméstica agilizar o trâmite na proteção de mulheres vulneráveis.

A menina ficou em um abrigo, acompanhada de uma assistente social do município. Em nota, a prefeitura de São Mateus informou que o Ministério Público, através da promotoria de Infância e Juventude, entrou com uma ação impedindo a divulgação de qualquer informação sobre o caso, para proteger a integridade da família e da criança.

O caso foi considerado estupro de vulnerável, que consiste em ato libidinoso ou relação sexual com menor de 14 anos ou contra pessoa que por deficiência física ou mental não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou que, por qualquer outro motivo, não pode oferecer resistência, conforme o artigo 217-A do Código Penal.

No Twitter, usuários pró-aborto iniciaram uma campanha para que a menina tivesse o aborto garantido, e a hashtag “#gravidezaos10mata” ficou nos assuntos mais comentados do Brasil na quinta-feira (13).

MMFDH diz que não foi responsável por vazamento de informação sobre criança

Na tarde desta segunda-feira (17), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) publicou uma nota para esclarecer que não foi responsável pelo vazamento de informações sobre a menina de 10 anos. A suspeita foi levantada por conta da relação de Sara Winter com membros da pasta de Damares Alves.

“Salienta-se que os técnicos do MMFDH não sabiam o nome da criança, nem o endereço da família. E que jamais tiveram contato com qualquer pessoa próxima à criança. A atuação do ministério limita-se ao relacionamento com as autoridades municipais durante o período de investigação”, afirmou o órgão.

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