A enseada de Botafogo estava lotada naquele final de tarde de janeiro de 1931. Mais de dez aviões italianos cruzam os céus da capital federal aos gritos de “Viva Itália! Viva Mussolini”. Liderando o grupo, ninguém menos que Ítalo Balbo, braço direito de Mussolini e líder da Marcha Sobre Roma de 1922 que colocou o Duce no poder. Balbo e sua comitiva foram recebidos por Getúlio Vargas no Palácio do Catete. O fascismo era muito mais popular no Brasil naqueles tempos do que costumamos admitir.
Menos de dois anos depois da visita dos aviadores, o escritor paulista Plínio Salgado (1895-1975), que havia se reunido com Benito Mussolini em Roma, lançava o Manifesto de Outubro, marco fundador da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento que chegou a ter quase um milhão de filiados e simpatizantes até ser proibido pelo Estado Novo e que costumamos tratar como uma nota de rodapé excêntrica da história do Brasil.
É um erro que alguns lançamentos recentes pretendem corrigir, com destaque para “Fascismo à Brasileira”, do jornalista Pedro Doria (Ed. Planeta, em pré-venda), e “O Fascismo em Camisas Verdes”, dos pesquisadores Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto (FGV Editora). Os títulos se somam a uma bibliografia não muito farta, mas que conta com as obras obrigatórias do cientista político Helgio Trindade.
Há anos venho alertando sobre a pouca atenção que os analistas políticos e intelectuais dão aos integralistas, especialmente conservadores e liberais que costumam ser associados ao integralismo por autores de esquerda, uma acusação leviana que merece resposta. O “fascismo brasileiro” liderado por Plínio Salgado foi um movimento revolucionário muito influente e que nunca desapareceu do imaginário político brasileiro.
Mesmo sem as marchas e hinos característicos, as camisas verdes com gravata, a saudação romana com o braço direito levantado e a palma para baixo, tão popular entre nazistas, e o cumprimento “anauê!” copiado dos escoteiros, não é difícil encontrar ecos do integralismo em políticos que misturam pautas antiliberais, anticomunistas e ultranacionalistas.
Alguns traços comuns destes grupos incluem o culto à personalidade do líder, com promessas de aparelhamento do sistema educacional com fins de doutrinação política, criação e manutenção de milícias paramilitares e intolerância feroz e paranoica com opositores, entre outras aberrações que ainda conquistam corações e mentes autoritárias. Foram-se os rituais, ficaram as ideias.
A influência de Plínio Salgado e dos camisas verdes na política brasileira não deve ser subestimada. Entre membros e simpatizantes, nomes como Vinícius de Moraes, Dom Hélder Câmara, Glauber Rocha, Alceu Amoroso Lima, Miguel Reale, Olympio Mourão Filho, Abdias do Nascimento, Gustavo Barroso, Alfredo Egydio de Souza Aranha, entre outros que marcaram a vida brasileira nas últimas décadas.
As impressões digitais dos integralistas estão na Constituição de 1937 e na CLT, passando pelo famigerado Plano Cohen que serviu de pretexto para a criação do Estado Novo, até o golpe de 1964 iniciado por Olympio Mourão Filho e a Junta Militar que governou o país em 1969, com dois dos três comandantes militares diretamente ligados ao movimento. As aulas de Educação, Moral e Cívica nas escolas se devem a um projeto do pai do integralismo.
A morte de Plínio Salgado em 1975 deixou os camisas verdes sem liderança e numa disputa fratricida pelo seu legado, uma disputa que ainda não terminou, mas as ideias que animaram os ultranacionalistas de ontem ainda podem ser identificadas no Brasil atual que ainda repete o bordão integralista “Deus, Pátria e Família”. Os grupelhos que hoje se identificam abertamente como integralistas ganharam as manchetes no último natal quando houve o ataque terrorista ao Porta dos Fundos no Rio de Janeiro, mas não possuem mais a relevância e protagonismo dos tempos de Plínio Salgado.
Ideologicamente, o fascismo brasileiro e seus derivados são rotulados como “de direita”, mas evidentemente o epíteto acusatório finge ignorar que o integralismo rejeita tanto o comunismo quanto liberalismo em seus principais documentos e discursos desde o início. A tentação de colar “fascista” em todo mundo que não é de esquerda é comum, especialmente entre os mesmos que não enxergam características fascistas em regimes de esquerda como o chavista, o que não é defensável numa avaliação política honesta e desinteressada.
O estudo sério da narrativa integralista é urgente para uma discussão no Brasil sobre como isolar, entre os que se opõem ao socialismo, quais são provenientes de uma matriz conservadora ou liberal clássica, e quais ecoam alguns dos regimes autoritários e antidemocráticos mais nefastos do século passado. Segundo “O Fascismo em Camisas Verdes”, Plínio Salgado manteve contatos pessoais com representantes da Alemanha nazista em 1941 com a intenção de se colocar como um líder simpático ao nazismo para presidir o Brasil numa eventual vitória do eixo na Segunda Guerra. Indefensável.
Há uma linha clara que separa ideologias compromissadas com a democracia liberal e outras com uma visão messiânica e idólatra dos líderes, uma pregação anacrônica em questões sociais e um ultranacionalismo xenófobo que inspira governos caudilhescos de triste memória.
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