A defesa de um legado

A Lava Jato pode acabar tendo o mesmo destino que a operação italiana Mãos Limpas.| Foto: Franklin Freitas/AFP

O paralelismo entre a Lava Jato e as Mãos Limpas é amplamente conhecido pelos brasileiros. O próprio Sergio Moro, em artigo publicado em 2004 sobre a operação italiana, parece antever o que seria a futura operação brasileira, desde que houvesse mudanças na legislação que permitissem a sua realização. Essas mudanças vieram principalmente no rescaldo das Jornadas de Junho de 2013, com a aprovação da Lei das Organizações Criminosas (12.850/2013), que incluía, entre importantes dispositivos, a delação premiada, uma das espinhas dorsais da operação que se iniciaria já no ano seguinte no Brasil. A partir de então, a semelhança entre as duas operações só aumentou com o passar dos anos.

A Mãos Limpas foi responsável pela investigação e condenação do alto escalão da política e do empresariado italiano, levando ao fim dos partidos tradicionais e palmilhando o caminho para a ascensão de um outsider na política, o magnata Silvio Berlusconi. A Lava Jato, por sua vez, também centrou fogo em nomes de destaque da política nacional, contribuindo diretamente para a realização de um impeachment contra uma presidente da República e para a derrota acachapante nas eleições de 2018 dos grandes partidos tradicionais, cuja reputação destroçada não foi capaz de fazer frente ao fenômeno Jair Bolsonaro nas urnas, em que pese a desigualdade de recursos e de meios à disposição.

Infelizmente, as duas operações parecem em tudo marcadas pela mesma sina, inclusive pelo final trágico que ora se anuncia no horizonte da política brasileira. Após 1994, governo e parlamento italianos se uniram numa investida para intimidação e desmembramento da Mãos Limpas que viria acompanhada de leis para proteger a classe política e dificultar as investigações criminais. No momento mesmo em que as investigações se aproximaram do entorno do primeiro ministro, denúncias de abuso de autoridade começaram a acontecer, com suspeitas contra a integridade da força-tarefa sendo levantadas diariamente. Apesar de nenhuma denúncia jamais ter sido confirmada, a ocorrência de dezenas de suicídios de presos da operação contribuiu para mudanças na opinião pública a respeito das prisões cautelares. Segundo a própria visão de procuradores envolvidos nas investigações, a sociedade italiana parecia cansada de uma investigação que se infiltrava nos meandros de um sistema político corrompido em todas as suas pontas, não só nos grandes partidos no poder.

E no Brasil? Assim como a renúncia do procurador Antonio de Pietro da operação marcou simbolicamente o fim da Mãos Limpas, a saída de Sergio Moro para assumir o cargo de ministro da Justiça coincidiu com uma série de derrotas da Lava Jato em várias frentes de batalha. Coincidiu, precisamente, porque não foi a causa. As pressões contra a operação já se faziam sentir há tempos e o juiz da 13.ª vara criminal de Curitiba aceitou o cargo no Executivo com a intenção de deter de alguma forma, numa outra instância, as investidas em curso.  Já em março de 2019 veio a decisão do STF de retirar as investigações de Caixa 2 da Justiça Federal e repassá-las para a Justiça Eleitoral. Em seguida, a publicação das conversas de membros da operação publicadas pelo Intercept fortaleceu a narrativa substancialmente equivocada de problemas processuais e interesses políticos envolvidos na operação. Em julho, Dias Toffoli suspendeu inquérito com dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) a pedido da defesa do senador Flavio Bolsonaro, estendendo a decisão a todas as investigações embasadas pelo Coaf e pelo Fisco, num movimento de esvaziamento do potencial de controle do órgão que só viria a se intensificar nos meses seguintes. No mês seguinte, o STF anulou a sentença de condenação do ex-presidente da Petrobrás Ricardo Bendine, impondo um entendimento sobre a ordem de apresentação das alegações finais que abriu precedente para inúmeras outras revisões processuais. Em agosto, Augusto Aras foi escolhido para a Procuradoria Geral da República (PGR), com um discurso de necessidade de impor limites ao que chamava de abusos dos procuradores envolvidos na operação. No mês seguinte, o Congresso aprovou a Lei de Abuso de Autoridades, impondo incertezas sobre o trabalho dos operadores do sistema de justiça criminal. Em novembro, o STF voltaria a proibir a prisão em segunda instância, desmembrando outro dos instrumentos essenciais para a abertura de novas frentes de investigação e condenação de criminosos. Antes do final de um 2019 fatídico, o então ministro Sergio Moro ainda veria sua proposta de Pacote Anticrime ser desidratada no Congresso, com o beneplácito do Presidente da República.

O primeiro semestre de 2020 não seria menos danoso para a operação. No início do ano, foi aprovado o projeto do juiz de garantias, que na prática impossibilitava o formato de força-tarefa como até então havia sido feito no país, abrindo espaço para interferências indevidas no andamento das investigações. Na PGR, sucessivas interferências têm provocado atritos institucionais graves, que apontam para um possível fim da operação ainda neste ano.

A estrutura dos times da operação vem sendo desmembrada, o que tem provocado pedidos de demissão de procuradores, tornando público o desentendimento entre membros da instituição. Na PGR, já se verifica mesmo a disposição de transformar o próprio conceito de força-tarefa, que supostamente mobilizaria muitos procuradores para trabalhar em posições privilegiadas. O esforço da instância central parece ser no sentido de acabar com as forças-tarefas, centralizando todas as investigações numa futura Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), obedecendo a uma lógica contrária à de descentralização que é marca da atuação e da independência dos procuradores do MPF.

Mais criticável ainda foi sem dúvida nenhuma o papel da PGR em todo o imbróglio envolvendo a busca de informações das forças-tarefas da Lava Jato de diferentes estados. Não se nega aqui à cabeça da instituição o direito a um amplo acesso a dados de operações levadas a cabo em todo o país. Mas isso com razoabilidade, tanto na forma quanto no conteúdo, na medida da necessidade, em primeiro lugar, de poder melhor dar continuidade às diferentes investigações e processos; em segundo lugar, da proteção dos direitos de todos os envolvidos; e, em terceiro lugar, de preservar o clima de confiança e respeito que deve presidir a relação entre os profissionais da própria instituição. A forma atabalhoada com que atuou a subprocuradora Lindôra Araújo – emitindo de forma quase pública sinais de desconfiança em relação aos colegas de Curitiba, quando, aos olhos dos cidadãos minimamente bem-informados, são merecedores dos maiores elogios – só prejudica a luta contra a corrupção.

Polícia Federal corrupção

A Lava Jato pode acabar tendo o mesmo destino que a operação italiana Mãos Limpas.| Foto: Franklin Freitas/AFPOuça este conteúdo

O paralelismo entre a Lava Jato e as Mãos Limpas é amplamente conhecido pelos brasileiros. O próprio Sergio Moro, em artigo publicado em 2004 sobre a operação italiana, parece antever o que seria a futura operação brasileira, desde que houvesse mudanças na legislação que permitissem a sua realização. Essas mudanças vieram principalmente no rescaldo das Jornadas de Junho de 2013, com a aprovação da Lei das Organizações Criminosas (12.850/2013), que incluía, entre importantes dispositivos, a delação premiada, uma das espinhas dorsais da operação que se iniciaria já no ano seguinte no Brasil. A partir de então, a semelhança entre as duas operações só aumentou com o passar dos anos.

A Mãos Limpas foi responsável pela investigação e condenação do alto escalão da política e do empresariado italiano, levando ao fim dos partidos tradicionais e palmilhando o caminho para a ascensão de um outsider na política, o magnata Silvio Berlusconi. A Lava Jato, por sua vez, também centrou fogo em nomes de destaque da política nacional, contribuindo diretamente para a realização de um impeachment contra uma presidente da República e para a derrota acachapante nas eleições de 2018 dos grandes partidos tradicionais, cuja reputação destroçada não foi capaz de fazer frente ao fenômeno Jair Bolsonaro nas urnas, em que pese a desigualdade de recursos e de meios à disposição.

Infelizmente, as duas operações parecem em tudo marcadas pela mesma sina, inclusive pelo final trágico que ora se anuncia no horizonte da política brasileira. Após 1994, governo e parlamento italianos se uniram numa investida para intimidação e desmembramento da Mãos Limpas que viria acompanhada de leis para proteger a classe política e dificultar as investigações criminais. No momento mesmo em que as investigações se aproximaram do entorno do primeiro ministro, denúncias de abuso de autoridade começaram a acontecer, com suspeitas contra a integridade da força-tarefa sendo levantadas diariamente. Apesar de nenhuma denúncia jamais ter sido confirmada, a ocorrência de dezenas de suicídios de presos da operação contribuiu para mudanças na opinião pública a respeito das prisões cautelares. Segundo a própria visão de procuradores envolvidos nas investigações, a sociedade italiana parecia cansada de uma investigação que se infiltrava nos meandros de um sistema político corrompido em todas as suas pontas, não só nos grandes partidos no poder.

E no Brasil? Assim como a renúncia do procurador Antonio de Pietro da operação marcou simbolicamente o fim da Mãos Limpas, a saída de Sergio Moro para assumir o cargo de ministro da Justiça coincidiu com uma série de derrotas da Lava Jato em várias frentes de batalha. Coincidiu, precisamente, porque não foi a causa. As pressões contra a operação já se faziam sentir há tempos e o juiz da 13.ª vara criminal de Curitiba aceitou o cargo no Executivo com a intenção de deter de alguma forma, numa outra instância, as investidas em curso.  Já em março de 2019 veio a decisão do STF de retirar as investigações de Caixa 2 da Justiça Federal e repassá-las para a Justiça Eleitoral. Em seguida, a publicação das conversas de membros da operação publicadas pelo Intercept fortaleceu a narrativa substancialmente equivocada de problemas processuais e interesses políticos envolvidos na operação. Em julho, Dias Toffoli suspendeu inquérito com dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) a pedido da defesa do senador Flavio Bolsonaro, estendendo a decisão a todas as investigações embasadas pelo Coaf e pelo Fisco, num movimento de esvaziamento do potencial de controle do órgão que só viria a se intensificar nos meses seguintes. No mês seguinte, o STF anulou a sentença de condenação do ex-presidente da Petrobrás Ricardo Bendine, impondo um entendimento sobre a ordem de apresentação das alegações finais que abriu precedente para inúmeras outras revisões processuais. Em agosto, Augusto Aras foi escolhido para a Procuradoria Geral da República (PGR), com um discurso de necessidade de impor limites ao que chamava de abusos dos procuradores envolvidos na operação. No mês seguinte, o Congresso aprovou a Lei de Abuso de Autoridades, impondo incertezas sobre o trabalho dos operadores do sistema de justiça criminal. Em novembro, o STF voltaria a proibir a prisão em segunda instância, desmembrando outro dos instrumentos essenciais para a abertura de novas frentes de investigação e condenação de criminosos. Antes do final de um 2019 fatídico, o então ministro Sergio Moro ainda veria sua proposta de Pacote Anticrime ser desidratada no Congresso, com o beneplácito do Presidente da República.

O primeiro semestre de 2020 não seria menos danoso para a operação. No início do ano, foi aprovado o projeto do juiz de garantias, que na prática impossibilitava o formato de força-tarefa como até então havia sido feito no país, abrindo espaço para interferências indevidas no andamento das investigações. Na PGR, sucessivas interferências têm provocado atritos institucionais graves, que apontam para um possível fim da operação ainda neste ano.

A estrutura dos times da operação vem sendo desmembrada, o que tem provocado pedidos de demissão de procuradores, tornando público o desentendimento entre membros da instituição. Na PGR, já se verifica mesmo a disposição de transformar o próprio conceito de força-tarefa, que supostamente mobilizaria muitos procuradores para trabalhar em posições privilegiadas. O esforço da instância central parece ser no sentido de acabar com as forças-tarefas, centralizando todas as investigações numa futura Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), obedecendo a uma lógica contrária à de descentralização que é marca da atuação e da independência dos procuradores do MPF.

Mais criticável ainda foi sem dúvida nenhuma o papel da PGR em todo o imbróglio envolvendo a busca de informações das forças-tarefas da Lava Jato de diferentes estados. Não se nega aqui à cabeça da instituição o direito a um amplo acesso a dados de operações levadas a cabo em todo o país. Mas isso com razoabilidade, tanto na forma quanto no conteúdo, na medida da necessidade, em primeiro lugar, de poder melhor dar continuidade às diferentes investigações e processos; em segundo lugar, da proteção dos direitos de todos os envolvidos; e, em terceiro lugar, de preservar o clima de confiança e respeito que deve presidir a relação entre os profissionais da própria instituição. A forma atabalhoada com que atuou a subprocuradora Lindôra Araújo – emitindo de forma quase pública sinais de desconfiança em relação aos colegas de Curitiba, quando, aos olhos dos cidadãos minimamente bem-informados, são merecedores dos maiores elogios – só prejudica a luta contra a corrupção.VEJA TAMBÉM:

Esse cenário é preocupante e esse cerco em torno da operação deve ser acompanhado com atenção, porque aponta não só para o enfraquecimento ou mesmo para o fim da operação, como para a extinção do seu legado, um legado que foi construído precisamente com um modelo descentralizado de atuação e de ampla confiança entre as várias instâncias da PGR. Foi esse modelo que permitiu investigar, expor e punir criminosos envolvidos em um dos maiores esquemas de corrupção do mundo. Durante anos, corruptos e corruptores foram presos numa escala nunca antes vista e isso infundiu um sentimento de confiança nas instituições em uma democracia combalida pelo descrédito e pela desesperança.

Parece haver, para além do âmbito da própria PGR, um esforço conjunto para apontar o que seriam “abusos sistemáticos” da Lava Jato como justificativa para enfraquecer seu prestígio e assim facilitar as diversas agressões ao arcabouço institucional de combate ao crime e à corrupção. Ainda que eventuais erros de procedimento possam ter sido cometidos circunstancialmente, o que é inevitável, em função da magnitude da operação, o que se tem visto até aqui é um esforço real e extraordinário de toda a equipe de procuradores da Lava Jato para agir dentro da mais estrita legalidade. E é lamentável que, em situações passíveis de diferentes e legítimas interpretações à luz da Constituição, passe-se a se defender sempre aquelas menos propícias à persecução criminal e a atribuir à força-tarefa, quando fez a opção por uma interpretação legítima de sentido inverso, a pecha de terem atuado com abuso de poder.

Com todos esses embates, a Lava Jato pode acabar tendo o mesmo destino que a sua prima mais velha italiana. Porém, não precisa ser assim, porque com isso se iriam também muitas das esperanças de um país melhor. Diz-se que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Esperemos que o ditado popular se cumpra desta vez e que o destino da operação brasileira seja diferente. Portanto, é preciso que mais vozes se levantem em defesa da Lava Jato e de seu grande legado, para que a sociedade possa renovar seu esforço da luta contra a corrupção.

Gazeta do Povo

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