Cidadãos americanos dos estados de Washington, Utah e Virgínia receberam nos últimos dias, pelo correio, pacotes com inscrições chinesas contendo sementes de uma planta misteriosa. O Departamento de Agricultura e Serviços ao Consumidor da Virginia orienta as pessoas a não plantar as sementes: o “presente” pode ser um ato de sabotagem biológica. “Espécies invasivas afetam o meio ambiente, expulsam ou destróem plantas e insetos nativos e prejudicam seriamente as plantações”, diz o comunicado. Seria este mais um ato das tensões da China com os EUA? Estaria Pequim por trás disso, assim como, segundo acusou o governo americano recentemente, esteve por trás de ações de hackers para roubar informações sobre o desenvolvimento de vacinas contra a covid-19?
Talvez não. O envio dos pacotes pode ser a iniciativa de algum engraçadinho ou de alguém disposto a dar início a uma teoria conspiratória que incentive ainda mais a desconfiança de parte da população americana em relação aos chineses. Uma disposição para isso já existe.
Durante décadas, desde a reaproximação entre Estados Unidos e China na década de 70, o país asiático vem ampliando sua força econômica, diplomática e militar. Durante esse período de ascensão, a estratégia de Pequim consistiu em não ostentar essa força, em manter uma diplomacia com perfil baixo e em evitar rusgas com os americanos.
O presidente Donald Trump mudou isso, ao adotar uma postura de confrontação em relação à China — inicialmente do ponto de vista comercial, com a guerra tarifária e com a tentativa de conter o avanço da tecnologia 5G chinesa, e mais recentemente com as acusações de que o regime de Pequim é culpado pela pandemia do novo coronavírus.
Apesar da retórica de confrontação, no entanto, Trump abriu um flanco no tabuleiro internacional, ao se eximir de liderar uma reação global à pandemia (para desgosto de aliados históricos na Europa). A China vem aproveitando essa lacuna, fechando acordos de cooperação científica com outros países, posicionando-se para aumentar a presença econômica em outras regiões do mundo e flexionando os músculos nos mares asiáticos e nas fronteiras com países vizinhos, como a Índia.
Ciberespionagem, disputas tecnológicas, embates diplomáticos e outras formas de tensões com os EUA (talvez até o envio de sementes assassinas?) devem continuar a ocorrer nos próximos anos. Esse será, potencialmente, o cenário mesmo que o democrata Joe Biden derrote Donald Trump e seja escolhido presidente nas eleições de novembro.
Ou seja, a rivalidade entre Estados Unidos e China nas próximas décadas é inevitável. Washington e Pequim, porém, podem escolher em que termos ela se dará: se em um contexto de confrontação ou de cooperação.
A escolha afetará toda a comunidade internacional — inclusive, claro, o Brasil.
Para nós, brasileiros, a melhor opção é a que permita intensificar os laços econômicos com a China (o maior freguês de nossas exportações agrícolas) sem abrir mão das boas relações com os Estados Unidos. Os países do Sudeste Asiático se beneficiaram durante muitos anos com esse cenário — “o melhor dos dois mundos”, na definição do primeiro-ministro de Singapura em artigo para a revista Foreign Affairs.
O chanceler Ernesto Araújo deve estar preparado para aconselhar corretamente o presidente Jair Bolsonaro a mudar sua política externa, adaptando-a à nova realidade, de forma que o Brasil não seja deixado para trás em uma conjuntura de rivalidade crescente entre Estados Unidos e China — seja ela cooperativa (com Biden) ou confrontativa (com Trump).
O conselho certo evitará que se plantem as sementes erradas nas relações do Brasil com seus principais parceiros internacionais.
Diogo Schelp
Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya). **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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