A falta de coesão social explica por que o País aparece mal nos rankings de felicidade
Coesão social é o termo que economistas e outros cientistas sociais usam para tratar do grau com que cidadãos de uma sociedade agem de forma cooperativa, em prol do coletivo. Às vezes também chamada de capital social, é considerada crucial para o desenvolvimento econômico – afinal, facilita aprovação de reformas econômicas, que costumam envolver a confiança de que sacrifícios de um grupo se darão em benefício do bem comum. A alta coesão social é até usada para explicar por que alguns países são mais felizes que outros. O Brasil naturalmente aparece mal na comparação internacional, e a carteirada do desembargador no fim de semana é emblemática.
Como outros brasileiros, o desembargador se recusa a usar máscara – uma medida simples e apenas levemente inconveniente, de baixo custo pessoal, mas que se tomada no agregado da população atenua o contágio de um vírus mortal. Seu desprezo pela obrigação que foi imposta a todos é tal que rasga a multa a ele aplicada pelo descumprimento. Nos vídeos, ofende guardas, que não seriam iguais a ele, mas inferiores, de pior instrução (questiona se sabem ler ou se falam francês).
A superioridade também seria demonstrada pelo seu acesso a autoridades (o secretário, o irmão do Ministério Público), capazes de retaliar os inferiores. Relatos de ontem dão conta que o comportamento é reiterado: ele está acima de respeitar cancelas de pedágios ou mesmo de conversar com uma ascensorista.
Recentemente, abordamos na coluna um código de conduta informal de países nórdicos que prega exatamente o oposto da postura “eu sou melhor do que você” do desembargador: a Lei de Jante. A alta coesão social dessas sociedades é tema de interesse de pesquisadores de diversas áreas. A coesão social elevada seria peça importante na explicação do enigma de por que esses países lideram os rankings internacionais de felicidade, a despeito de longos invernos rigorosos e dos gigantescos impostos sobre a renda. A tranquilidade de viver em uma sociedade cooperativa compensaria a falta de sol ou a impossibilidade de gastar boa parte do próprio dinheiro. É triste viver em um país de carteirada.
Se a literatura acadêmica mostra que maior coesão social é tão importante para o crescimento econômico e para o bem-estar dos cidadãos, fica a pergunta: é possível aumentá-la ou ela é simplesmente dada por acidentes históricos? No caso de países como a Dinamarca, a explicação da elevada coesão social frequentemente passa pela implantação do próprio Estado de bem-estar social, que assegura maior igualdade de tratamento em obrigações (impostos altos) e em situações de azar (doença, desemprego).
A tese é disputada e a relação entre coesão social e Estado de bem-estar social é discutida nos termos do dilema Tostines: a sociedade é coesa porque tem o Estado de bem-estar social ou o Estado de bem-estar social pode ser construído por conta da alta coesão? Na linha da segunda hipótese os argumentos vão dos Vikings (cujo código de honra seria precursor dessas sociedades pró-coletivo) até o estudo das regiões americanas que receberam grande afluxo de emigrantes escandinavos no passado, como Minnesota (em que se observariam coesão social maior do que no resto dos EUA, mesmo sem Estado de bem-estar social).
Já pesquisadores italianos sugerem que seria possível aumentar o nível de coesão social (Becchetti et al., 2013). Acompanhando dados da Alemanha por quase duas décadas, concluem que a tensão social pode ser diminuída com menor desigualdade, recomendando políticas pró- educação e pró-emprego.
Por sua vez, cientistas alemães recomendam políticas públicas que fortaleçam redes pessoais, confiança nos outros e tolerância; ampliem a identificação com o país; e motivem as pessoas a serem solidárias, obedecerem regras e engajarem-se na vida social. Eles reconhecem, porém, que a missão é difícil (Delhey e Dragolov, 2015).
Aqui, o economista Marcos Mendes – que discutiu a importância da coesão no livro Por que é tão difícil fazer reformas econômicas no Brasil? – aponta para o imperativo de um “longo processo de garantir igualdade de oportunidades” e para a construção de “um Estado capaz de prover bens públicos que beneficiem a todos”. Fica a aspiração de que políticas efetivas contra a desigualdade gerem cidadãos mais iguais e uma sociedade sem carteiradas.
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