O Congresso está prestes a decidir o futuro do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). No meio educacional, a previsão é de que parlamentares aprovem “com folga” a proposta da deputada Dorinha Rezende (DEM), que torna o programa permanente e aumenta a parcela de contribuição da União para o fundo de 10% para 20%, até 2026.
Há pouco tempo, a proposta era ainda mais ousada: ampliar de 10% para 40% a complementação do governo federal. O MEC considerou que a parcela poderia ferir o equilíbrio fiscal e que, no longo prazo, não seria solvente. Em contrapartida, sugeriu aumentar para 15% o aporte da União no Fundeb, numa escala progressiva de 1 ponto percentual ao ano. A pasta acabou se eximindo da discussão.
O Brasil está entre as nações que mais investem em educação. Enquanto aqui 6% do PIB é direcionado à área, países da OCDE destinam, em média, cerca de 5,5% à educação. Quando se olha para os resultados no Pisa, no entanto, figuramos nas últimas colocações.
Ainda, como explicou João Batista Araújo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, em artigo para a Gazeta do Povo, nos últimos 20 anos, embora o país tenha dobrado o investimento em educação, indicadores revelam que não houve, na mesma proporção, melhora significativa da realidade educacional.
Verifica-se uma baixa relação entre gasto e desempenho. Isso significa, por exemplo, que o argumento de que a escassez seria a principal razão histórica para o atraso educacional no Brasil pode não ser exatamente verdade. Duas das principais razões do quadro em que o país se encontra, apontam especialistas, é que o Brasil investe muito em educação superior em detrimento da educação básica. O investimento por aluno propriamente dito, além disso, é relativamente baixo.
Como resultado, milhares ainda não sabem ler, outros tantos deixam a escola precocemente e há, ainda, professores que carecem de formação adequada. Investimento maciço, apontam estudos, empregado isoladamente e não acompanhado de um esforço sistêmico e direcionado a áreas não prioritárias, dificilmente será bala de prata para problemas tão complexos como os que a educação do chão da escola enfrenta. Mais investimento, por si só, não melhora a qualidade do ensino.
É também o que levam a crer algumas das experiências exitosas no país. Sobretudo, o Ceará, estado relativamente pobre que desponta com os melhores indicadores de qualidade de educação no Brasil. Para especialistas, os resultados educacionais das escolas cearenses são significativamente superiores ao esperado quando se considera seu contexto socioeconômico.
Ocorre que a chave do estado para melhorar a educação – sem investimentos excepcionais – foi a aplicação eficiente dos recursos na educação básica acompanhada de um conjunto de cinco fatores principais (leia abaixo).
Um relatório publicado na última quarta-feira (15) pelo Banco Mundial corrobora com a afirmação. Além de salientar que investir em educação é, sem dúvida, condição primordial para alcançar qualidade, explica que não é suficiente. Tão ou mais fundamental do que aumentar os recursos, como ocorrerá se o novo Fundeb for aprovado, é melhorar a gestão e seus mecanismos de aplicação.
Adversidade socioeconômica
O Ceará é um estado relativamente pobre. Seu PIB per capita figura entre os cinco menores das unidades federativas – o que corresponde a um terço da renda per capita dos estados mais abastados. Dados do Cadastro Único de junho de 2019 ainda revelam um cenário desolador de extrema pobreza: mais de 3 milhões de pessoas no Ceará sobrevivem com R$ 89,01 ao mês.
A carência de recursos e a adversidade socioeconômica, contudo, não engessaram seu protagonismo. Desde 2005, o Ceará vem apresentando os maiores índices no Ideb, ferramenta que mede a qualidade da educação no país com base nas taxas de aprovação escolar e na pontuação nas avaliações de aprendizagem de português e matemática.
Municípios cearenses investem menos de um terço do que gastam os estados brasileiros mais ricos – a exemplo de São Paulo – e ainda assim conseguem alcançar índices melhores de qualidade da educação. Isso ocorre, apontam especialistas, por conta de sua gestão e alta eficiência no uso dos recursos.
“É possível e é preciso fazer mais com os recursos disponíveis. Sobral e Ceará estão mostrando isso”, disse Maurício Holanda Maia, ex-secretário-adjunto de educação no Ceará, já em 2013, ao Canal Futura. Mas isso não significa, salienta ele em seguida, “que não precisamos de mais recursos, isso já é extrapolação”.
“Nossa condição atual não pode servir como desculpa, justificativa, para não fazermos o máximo possível para garantir a cada criança a aprendizagem que é de direito dela”, disse Maia.
Um relatório publicado na última quarta-feira (15) pelo Banco Mundial revela que, embora investir seja condição primordial para alcançar uma educação de qualidade, não é suficiente. “A evolução dos municípios do Ceará na educação nos mostra isso”, afirma André Loureiro, economista sênior na Prática Global de Educação do Banco Mundial, um dos responsáveis pelo estudo.
“Quase todos os 184 municípios cearenses deixaram de apresentar níveis muito baixos de qualidade educacional em termos de aprendizado e aprovação escolar, e seus resultados atuais estão entre as melhores pontuações do Ideb em nível nacional”, afirma o relatório.
“Investir em educação é uma condição necessária para alcançar uma educação de qualidade. Mas quando olhamos para os dados de investimento e resultados educacionais vemos que certamente não é uma condição suficiente, e o maior indicativo disso no Brasil é o caso dos municípios do Ceará”.
Assim sendo, o especialista aponta que apenas um esforço sistêmico, baseado pilares alinhados à evidência global, foi capaz de promover mudanças estruturantes no Ceará. São eles: incentivos financeiros, suporte técnico para o alcance da alfabetização, liderança política, gestão do ensino fundamental sob responsabilidade de municípios e um sistema de monitoramento e avaliação das políticas rigoroso.
É imprescindível, dessa, forma, que o possível aumento no aporte do Fundeb seja acompanhando de medidas estratégicas que possam tornar eficaz o emprego dos recursos.
“Para os municípios brasileiros que investem menos em educação do que os municípios cearenses, certamente, é preciso aumentar os investimentos para promover melhorias educacionais. É uma condição necessária”, afirma Loureiro, do Banco Mundial. “Para os municípios brasileiros que investem mais em educação do que os municípios cearenses, pode ser necessário aumentar o investimento, principalmente nas redes de educação mais complexas. Mas é possível conseguir melhores resultados com os recursos que têm atualmente, se os seus respectivos estados adotarem reformas inspiradas no modelo cearense para o ensino fundamental”.
A secretária de Educação Básica do MEC, Ilona Becskeházy, doutora em Educação pela USP e pesquisadora do ensino em Sobral (CE), há tempo afirma que a fórmula de sucesso inclui um currículo exigente e preciso, expressado em livros didáticos de alto nível, com um monitoramento da aprendizagem segundo os padrões internacionais. Nada tão excepcional, ela garante, e, em outras palavras, diz que isso se deve à “política feijão com arroz”.
“Feijão com arroz é uma expressão variante de outra mais dura, ‘ter vergonha na cara’ e fazer o que um sistema de governo local deve fazer por sua população. Infelizmente, é um caso quase único, que foi levado ao nível do estado do Ceará pelas mesmas pessoas que montaram a rede municipal: dois dos irmãos Gomes, Cid e Ivo”, disse Ilona em entrevista à Gazeta do Povo em janeiro, antes de ser nomeada secretária (leia a entrevista completa aqui).
“E como se faz isso. É uma receita que começou a ser desvendada nos anos 1970 e que ficou conhecida entre os formuladores de políticas públicas e acadêmicos (infelizmente pouco difundida no Brasil, pois sofreu oposição sistemática dos acadêmicos locais) como “escola eficaz”, afirmou, à época. “Tem os seguintes ingredientes básicos: 1) objetivos de ensino absolutamente claros (no início, em Sobral, eram medidas de fluência leitora), 2) um sistema de monitoramento que permite feedback rápido para as escolas, professores e para a gestão municipal e 3) material didático unificado (pelo menos o básico, pois os professores podem, em conjunto com suas coordenações, complementar as sequências didáticas dos livros didáticos e as que são preparadas centralmente). A formação continuada é feita em cima dessas sequências didáticas.”
Distribuição de ICMS no CE tem base em desempenho
O modelo de financiamento com base em resultados também foi fator de sucesso no Ceará. A lei 14.023, aprovada em 2007 no estado, alterou a forma como o governo transferiria aos municípios cearenses sua parcela do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
A partir de então estabeleceu-se que o repasse seria baseado no desempenho de cada município em metas pré-estabelecidas para os setores de educação, saúde e meio ambiente. Antes, a distribuição era feita com base na população e no nível de renda de cada cidade.
“Como resultado, 18% da receita total de ICMS recebida por um município deriva de melhoras em seus resultados educacionais, como, por exemplo, o aprendizado dos alunos e a aprovação escolar. No caso dos municípios mais pobres, os repasses do ICMS podem representar mais de metade de toda a receita municipal”, informa o relatório do Banco Mundial.
Em sua proposta de contribuição com o Fundeb, o MEC também sugeriu a política de indução por parte do Estado brasileiro, para que fossem adotados modelos de repartição do ICMS voltados à qualidade da educação. “Os modelos levariam à busca por melhores resultados na gestão dos sistemas de ensino por parte do estados e à melhoria da gestão, pelos municípios, dos sistemas de ensino”, propôs a pasta em 2019, ainda com Abraham Weintraub à frente.
Atualmente, os recursos do Fundeb dentro dos estados são distribuídos com base no número de matrículas das instituições de educação básica. Na nova proposta, a previsão é que apenas 2,5% do total de gastos atribuídos à União sejam para a indução de resultados, “tendo a adoção de boas práticas como pré-requisito de elegibilidade para recebimento desse valor.”
O especialista do Banco Mundial alerta que os incentivos financeiros não devem comprometer o orçamento básico da educação, mas devem funcionar como recursos adicionais. “Os incentivos financeiros têm que ser recursos adicionais para a prefeitura como premiação da melhoria de resultados educacionais e não deve colocar em jogo os recursos para o funcionamento das escolas”, defende Loureiro.
Foco deve ser em Educação básica
É por esta razão que aumentar o investimento por aluno, sobretudo na educação básica, é um dos principais fatores de sucesso. Um universitário, por exemplo, custa aos cofres públicos cerca de R$ 41 mil ao ano, ao passo que alunos da educação básica demandam apenas R$ 13 mil, segundo dados da OCDE. Se olharmos para os números, ainda, veremos que a discrepância é enorme: são 46 bilhões de estudantes na educação básica frente a 8 milhões no ensino superior.
Na outra ponta, as nações mais ricas do mundo que fazem parte dos países-membros da OCDE, como Estados Unidos, Alemanha e Japão, investem em média, por aluno na educação básica, US$ 8,7 mil dólares.
Na educação básica, não há dúvida entre os especialistas que se apoiam nos achados científicos de que o foco deve ser em alfabetização. Em 2007, o estado cearense implementou o chamado Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (Paic), após entender a aprendizagem da leitura e escrita como passo chave para transformar a educação. “[o programa] combinava diferentes ações de apoio técnico às secretarias municipais de Educação. Como no Ceará o ensino fundamental já era principalmente de responsabilidade dos governos municipais, o programa estabeleceu metas de resultados educacionais em acordos feitos entre a Secretaria da Educação do Estado do Ceará (Seduc) e os governos municipais”, diz o relatório do Banco Mundial.
“O foco na alfabetização foi um primeiro passo lógico do ponto de vista político, pedagógico e de formulação de políticas públicas. A alfabetização é a base do sucesso da aprendizagem. Para a formulação de políticas, é um passo concreto da política educacional que fortalece a gestão intermediária, promove a meritocracia, estabelece incentivos e estrutura avaliações externas de aprendizado, o que, em última análise, sustenta o progresso em outras disciplinas e níveis de ensino. Do ponto de vista político, as metas de alfabetização fornecem resultados de curto prazo que podem ser cumpridos em um mandato”
Capital humano gera crescimento econômico
O relatório do Banco Mundial alerta para outro ponto: é preciso apostar em capital humano, e não apenas em recursos, para mudar o quadro econômico local.
“No mundo todo, a literatura demonstra que uma melhora no aprendizado de todas as crianças se traduz em ganhos substanciais de longo prazo para a sociedade, inclusive em relação ao aumento da renda dos indivíduos, da produtividade do trabalho e do crescimento econômico”, afirma o relatório.
Embora não existam, ainda, estudos robustos que demonstrem os ganhos econômicos advindos da melhoria nos resultados educacionais no Ceará, há o entendimento entre os especialistas do Banco Mundial de que “o crescimento econômico observado no estado nos últimos anos no estado – com melhorias substanciais na produtividade e participação na parcela nacional do PIB do Brasil – provavelmente está relacionado, pelo menos em parte, com os consideráveis ganhos de aprendizagem” no Ceará.
A autonomia e flexibilidade dos municípios com investimento em professores também mudou a realidade do estado – os profissionais recebem, em média, 16,6% a mais de formação continuada em comparação com estados vizinhos. Ceará também forneceu incentivos para professores que trabalham com alfabetização. “A Seduc começou a prestar apoio às secretarias municipais de Educação, inclusive por meio da formação de professores com foco em práticas pedagógicas. A secretaria também começou a produzir materiais de alfabetização e a promover workshops para professores municipais, incluindo visitas às escolas para apoiar a implementação das mudanças e compartilhar boas práticas”, informa o relatório.
“As ações de formação de professores têm seu foco no uso do material estruturado e nas rotinas e práticas letivas. As secretarias municipais de Educação participam de sessões regulares de formação com instrutores qualificados do governo estadual e, por sua vez, repassam esses ensinamentos a seus professores. Nos municípios com níveis mais baixos de alfabetização, os professores são formados diretamente pelos instrutores do governo estadual. Essas ações, que também envolvem observações das práticas didáticas pelos formadores de professores, baseiam-se nos materiais pedagógicos que os professores usam em sua rotina diária”.
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