Assim como o tédio definiu parte do século XIX e a depressão parte do século XX, é a raiva o sentimento que define nosso tempo. Raiva, indignação, revolta, até ódio. Vivemos possuídos por esse diabo-da-Tasmânia que, como disse alguém, nasce da sensação de impotência. Somos pequenos, minúsculos e até insignificantes. Não queremos ser pequenos, minúsculos, insignificantes. E tome raiva!
O problema é que a raiva, em seu estado atual, não constrói absolutamente nada. Trata-se apenas de uma vontade muito primitiva de controlar e subjugar tudo aquilo que nos faz mal. Desde o político que roubou o dinheiro de nossos impostos até, sei lá, a voz de Pablo Vittar. Incapazes de aceitar que coisas que nos ofendem existem e são até exaltadas por outras pessoas, queremos sair por aí destruindo. E saímos mesmo.
Munidos de tacapes verbais, e tendo à disposição um sem-número de sacos de pancada na forma dos impessoais avatares, saímos por aí reduzindo tudo a cacos, na esperança vã de moldar o mundo da forma que consideramos mais agradável. Ou menos desagradável, talvez. Calamos quem nos incomoda, quem insiste em esfregar na nossa cara a verdade incômoda há muito consagrada na literatura: somos pequenos, minúsculos e até insignificantes. (Ainda bem).
O caso de Gilmar Mendes
Neste regime de força, não há espaço para os bunda-moles, os isentões, os prudentes & sofisticados. Se você não compartilha da minha raiva, da minha indignação, da minha revolta por Jair Bolsonaro ou Gilmar Mendes ou Lula é porque há algo de errado com você. Algo incurável. Você também precisa ser destruído.
O caso do ministro Gilmar Mendes, aliás, é emblemático. Repare como ele quase sempre aparece com os cantos da boca curvados para baixo, numa expressão de desgosto permanente. De incômodo. Até de nojo. É como se a vida fosse um atrapalho. Um fardo que tem lá suas benesses (o funcionário para puxar a cadeira, a lagosta, etc.), mas que ele não pediu para carregar. Gilmar Mendes tem raiva.
E, como tal, ele se tornou símbolo de uma justiça igualmente raivosa. Na época do Mensalão, como Gilmar Mendes estava “do lado certo da história”, essa raiva era considerada virtuosa – e eis aí a gênese de um engano cujas consequências ainda ecoarão pelo tempo. Porque nenhuma raiva é, de fato, virtuosa. Nem mesmo aquela direcionada contra nossos inimigos.
O “lado certo” da história
Fascinante é pensar como chegamos até aqui. Foram anos e anos cultivando a raiva como agente transformador da sociedade. Décadas fomentando a indignação nas páginas de jornal e nos corredores das universidades. Até na igreja evangélica que eu frequentava na minha pré-adolescência a raiva (chamada biblicamente de “ira”) era estimulada. Deu no que deu, no que está dando e no que ainda vai dar.
Não estou propondo, aqui, que as pessoas abdiquem repentinamente da raiva. Até porque não acredito que isso seja possível. A realidade está aí e seus aspectos mais repugnantes são o tempo todo destacados. A beleza perdeu espaço. A contemplação é considerada coisa de covarde. A capacidade de perdoar se esgotou.
Sentir raiva virou sinônimo de “estar vivo”. Simplesmente porque é mais divertido derrubar estátuas, silenciar os que sabem expressar melhor um argumento, xingar, xingar muito, bater o pé na caixa de comentários e gritar para todo mundo ouvir que “EU ESTOU DO LADO CERTO DA HISTÓRIA, P&%*A!”. Criar, argumentar e propor, por outro lado, são verbos que caracterizam os fracos, os que não estão em consonância com a entropia que rege o mundo.
Me pergunto o que acontecerá quando (e se) a fragmentação chegar ao ponto de termos 7 bilhões de pessoas querendo fazer prevalecer sua visão de mundo, cada qual com raiva uma da outra porque, enfim, discordância alguma jamais será permitida. O que acontecerá quando todos nos transformarmos em gilmares-mendes, cada qual com uma versão muito própria do que é justiça e, consequentemente, do que é a culpa e o castigo apropriado?
E mais: o que acontecerá ainda hoje, agorinha mesmo, quando você chegar ao final deste texto com raiva, indignado, revoltado e até com ódio de quem o escreveu.
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Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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