As reações ao diagnóstico de Jair Bolsonaro mostram como os poderosos se alimentam das falhas morais e da falta de princípios dos próprios apoiadores.
É sintomático da sociedade brasileira que muitos só comecem a levar a sério a santidade da vida humana quando o diagnóstico de coronavírus é o do presidente da República, a maior autoridade do país. Não somos todos iguais, uns são mais iguais que os outros. Nessa e em praticamente todas as outras questões morais, só se exige decência nas ações diante de autoridades. O cidadão comum é tratado como gado.
Uma autoridade que foi capaz de proferir publicamente a saraivada de absurdos e insensibilidades diante de milhares de famílias enlutadas e devastadas pela doença ou pela perda financeira não tem o direito de reivindicar empatia e respeito quando se vê diante do mesmo problema. Reparem que Jair Bolsonaro não fez isso em nenhum momento. Gostem ou não dele, acumulou sete mandatos no parlamento, colocou todos os filhos na política, chegou à presidência da República e fez a elite financeira se agachar ao ponto de participar de live com sanfoneiro sem reclamar. Figuras com tanto tempo de vida pública aprendem a não cometer os desatinos dos amadores, terceirizam a tarefa.
Uma vez debatia com o ministro Sepúlveda Pertence, já aposentado do STF, sobre a natureza da política e ele me presenteou com uma frase para a vida toda: “a política é a arte da sobrevivência”. Numa pandemia, sobrevivem os que têm a sensibilidade de entender que a vida do cidadão comum tem, para a família dele, mais importância que a vida de qualquer poderoso ou famoso. A arte está em expressar-se com constância publicamente, atribuindo o mesmo tratamento a todos os casos porque todos são vidas humanas.
Reparem que, assim como Jair Bolsonaro, tiveram a sensibilidade de não reivindicar nem dar ao presidente tratamento diferente do dispensado aos demais cidadãos os outros chefes de Poderes. Dias Toffoli, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia enviaram mensagens de pronta recuperação ao presidente da República. Cada uma das três tem exatamente o mesmo tom sóbrio e sereno que foi utilizado em mensagens de solidariedade à população em ocasiões anteriores. Ninguém é presidente de Poder da República à toa e é na tempestade que se conhece o marinheiro.
O bate-boca que envolve desejar a morte dos outros ou selecionar, no meio da população, quem tem o direito de se salvar é muito útil para os políticos e também para que possamos dividir com clareza o debate público entre homens e moleques. Falando francamente, desejar a morte de alguém é uma profecia autorrealizável, já que todos vão morrer um dia. E atire a primeira pedra quem nunca teve esse tipo de manifestação horrorosa dentro da própria alma, a vontade de ver um desafeto morto. A diferença está entre reconhecer que há o mal dentro da alma humana e ter orgulho dele.
Decidi roubartilhar uma frase de Albert Camus que meu amigo Gilberto Morbach, editor do Estado da Arte do Estadão compartilhou hoje: “Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorrras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo: é a de combatê-los, em nós mesmos e nos outros.” Lembrando sempre que “em nós mesmos” vem antes de “nos outros”.
É evidente que entre os opositores do presidente da República haveria aqueles cujo ressentimento grita mais alto que princípios morais, esse tipo social existe em todo o canto. Previsível que fariam, como fizeram, orgulhosos pedidos pela morte de Jair Bolsonaro. Nossa sociedade deixou esse tipo de personalidade infantilóide, arrogante e ruidosa ser confundida com liderança durante muitos anos. O presidente também tem a cota desse tipo social entre seus apoiadores e sabe disso. O que fazer diante do bom gosto das passeatas dançando com caixão numa pandemia? Como lidar com as declarações de parlamentares tirando sarro de doentes?
Quando não pode reivindicar para si o respeito que não teve com os outros ou o rigor moral que seu grupo não tem, um político sempre tem na manga a inconstância dos inexperientes e a falsa segurança dos tolos. No momento, eles disputam o direito de desejar a morte dos outros e de, ao mesmo tempo, admoestar quem deseja a morte dos outros. Tutti buona gente.
Houve um movimento nas redes sociais com a hashtag #ForçaCovid impulsionado principalmente por gente escandalizada com as declarações de Jair Bolsonaro e seus apoiadores desde o início da pandemia. São pessoas que passaram meses ditando regras de comportamento e respeito com doentes e em um dia resolveram jogar tudo para o alto. Daí, o pessoal que sempre desrespeitou essas regras e brincava de Deus resolveu ditar essas regras para quem ditava antes. Antes podia “vão morrer só alguns”, “só vão morrer os mais velhos”, “morre quem tem comorbidades”, mas agora não pode mais nada.
Qual a diferença entre os dois grupos? Nenhuma. Faltam princípios, coerência e padrão moral. Sobram arrogância, soberba e irresponsabilidade. Infelizmente, reforçam nosso aspecto cultural mais cruel: a diferença entre as duas classes de cidadãos. A mudança de opinião não é sobre a santidade da vida, a empatia ou o respeito a quem sofre, não há mudança, há apenas a eterna reverência a quem manda. Entrou o presidente da República na jogada? Então o comportamento muda porque, para Jair Bolsonaro, as regras são diferentes daquelas que se aplicam aos demais cidadãos.
Pouco importa se é para atacar ou defender, mudar de discurso quando uma mesma chaga que atinge o povo passa a tocar o rei mostra que a síndrome do colonialismo ainda vive enraizada na nossa cultura. Para muitos e, mais grave ainda, para muitos a quem a nossa sociedade dá posições de liderança, a vida dos poderosos tem valor diferente da vida do cidadão comum. Não importa com qual desses lados você concorde, lembre-se que você e eu somos, antes de tudo, cidadãos comuns.
Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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