Depois de uma semana digerindo o voto de Edson Fachin no julgamento da ação que questiona a constitucionalidade do famigerado inquérito das fake news (ADPF/572), achei melhor por pra fora a análise do amontoado de palavras escritas pelo ministro, que não dizem nada (mas dizem muito), porque isso estava me embrulhando o estômago.
Antes da análise ponto a ponto do voto do ministro para defender que um juiz pode sim ser investigador, acusador e julgador de um suposto crime, que nem é tipificado no código penal, aviso que o texto é longo (se preferir pode ver essa análise em vídeo clicando no ícone do play na imagem do topo da página).
Começo por uma introdução. Você sabe o que é preciso para se tornar um ministro do Supremo Tribunal Federal, além, obviamente, de ter o nome indicado pelo presidente da República e aprovado pelos senadores? A Constituição lista cinco exigências: ser brasileiro, ter entre 35 e 65 anos de idade, estar no gozo de seus direitos políticos (não pode ser um condenado que teve os direitos políticos cassados), precisa ter notável saber jurídico e reputação ilibada.
Há muitos questionamentos sobre esses dois últimos itens – o notável saber jurídico e a reputação ilibada – em relação a alguns dos 11 atuais ministros do STF por vários motivos que nem preciso descrever aqui. Os ministros sabem que a sociedade está insatisfeita com a forma como vêm atuando e, apesar das tentativas de calar quem se posiciona publicamente contra a Corte, não cansam de dar mais motivos para a insatisfação. O mais recente foi esse voto do ministro Edson Fachin no início do julgamento sobre a constitucionalidade do inquérito das fake news, na última quarta-feira (10).
Foi a primeira sessão de julgamento da ação proposta pelo partido Rede Sustentabilidade, que pede a suspensão do dito inquérito, alegando que ele é inconstitucional. Nessa primeira sessão só Edson Fachin votou, por ser relator, mas seu voto já deu uma ideia do que o corporativismo do STF é capaz de produzir. Em 53 páginas, através de muitas e muitas voltas, o ministro deixa claro que não entendeu ou prefere ignorar o que está escrito na Constituição e no Regimento Interno do próprio STF.
Basta olhar ponto a ponto seu voto para concluir que não há preocupação com a obediência às leis ou ao regramento do próprio tribunal, sequer explicação para a falta de interpretação básica do texto.
O voto ponto a ponto
Questão 1: O presidente do Supremo pode abrir inquéritos?
O primeiro questionamento da Rede Sustentabilidade foi bem óbvio. O normal é o Judiciário abrir processos e não inquéritos, que são peças policiais. E os processos já são uma segunda etapa, que só acontece depois de uma denúncia chegar até a polícia ou ao Ministério Público e esses órgãos abrirem (e realizarem) a investigação.
A Justiça só entra na apuração dos fatos após policiais colherem depoimentos, apontarem suspeitos e testemunhas, levantarem provas ou evidências e encaminharem tudo para o MP. E se os promotores, depois de analisarem o trabalho feito pela polícia, concluírem que houve sim crime e apresentarem a denúncia ao Judiciário.
Aos juízes cabem dois papeis: decidir se aceitam a denúncia, abrindo o processo que transforma suspeitos em réus; e julgar se os réus são culpados ou inocentes, depois de analisar todas as provas, colher novos depoimentos e ouvir as testemunhas e os acusados.
Como o inquérito das fake news foi aberto por um juiz (Dias Toffoli) e o investigador/acusador é outro juiz (Alexandre de Moraes), a Rede fez o legítimo questionamento, em nome de todos nós, brasileiros. E é importante lembrar que nesse inquérito específico das fake news o Tribunal diz ser também a vítima, ou seja, o STF é tudo!
A Constituição explica bem tudo isso que resumi acima: qual é a função de cada órgão, quem investiga, quem acusa, quem julga. O ministro Edson Fachin preferiu deixar a Constituição de lado e olhar para o Regimento Interno do STF (RIST) – uma espécie de constituição própria. No voto ele citou o artigo 43 do RIST, onde está escrito que: “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.
O texto é claro: diz que se um crime for cometido dentro do STF, contra uma autoridade ou alguém que trabalhe com ela, o presidente do STF pode sim abrir inquérito. Mas isso não aconteceu. As supostas notícias falsas sobre ministros ou sobre o próprio tribunal não foram produzidas dentro do tribunal, em sua sede e dependências. O que Fachin escreveu no voto?
“A petição inicial não pleiteia expressamente a declaração de inconstitucionalidade do artigo 43 do RIST e sim do ato instaurador do inquérito.” É isso mesmo que você leu! O ministro disse que, como a Rede não mencionou o artigo 43 do Regimento Interno do STF, tanto faz o que está escrito lá. Então, se a Rede apenas queria saber se o presidente do Supremo poderia ter aberto um inquérito, ele, ministro Fachin, acha que sim, em nome da “defesa do STF”.
Voltando exatamente ao que ele escreveu: “se o juiz não tem ordinariamente essa função [de abrir inquérito], a defesa institucional a reclama se houver inércia ou omissão dos órgãos de controle.” Aqui, além de dar uma opinião sem qualquer embasamento legal, ele insinua que órgãos de controle estavam sendo omissos. Que órgãos de controle seriam esses? A equipe de segurança do STF? A polícia? O Ministério Público? A Procuradoria Geral da República? Ficou no ar.
Questão 2: A publicação de fake news é um crime tipificado no código penal brasileiro?
Todo mundo sabe a resposta para a pergunta feita pela Rede Sustentabilidade, mas no voto o ministro Fachin foi por outro caminho: “os limites à liberdade de expressão estão em constante conformação e, penso, demandarão ainda reflexão do Poder Legislativo e do Poder Judiciário e, especialmente desta Corte, no tocante ao que se denomina atualmente de fake news”.
Ãhn??? Parece até brincadeira, né? De certa forma ele assumiu que o inquérito se sustenta na investigação de um crime que não existe. Quando o ministro diz, com todas as letras, que o Legislativo (Câmara e Senado) ainda vai precisar refletir sobre “os limites à liberdade de expressão” e o Judiciário também, está concordando que hoje produzir notícias falsas não é algo que possa ser classificado como crime, embora o código penal já descreva a injúria, a calúnia e a difamação, que podem ser apontados como crimes em praticamente todas as notícias falsas.
Ele não explicou, porém, o motivo pelo qual o Judiciário está, através desse inquérito, buscando culpados por infringir limites que ninguém sabe quais são, afinal “estão em constante conformação”.
Questão 3: Pode o presidente da Corte designar diretamente o relator de um processo?
Quanto a esse questionamento, o advogado da Rede lembrou que a regra, estabelecida no Regimento Interno do STF (artigo 66 do RIST), é a do sorteio. Assim que um processo entra no Tribunal o sistema informatizado define quem será o juiz relator. Com o inquérito das fake news foi diferente. O ministro Dias Toffoli abriu o inquérito e decidiu que o relator seria o colega Alexandre de Moraes. Foi sem sorteio, apenas com indicação.
Qual foi a análise do ministro Edson Fachin sobre esse questionamento da Rede? “Não é extravagante apreender que a designação é um modo de realizar a delegação, pela qual aponta, indica, escolhe a quem delegará. Aqui temos uma delegação por designação.” O que ele disse é que não precisa respeitar o artigo 66 do Regimento Interno que prevê distribuição de processos por sorteio!
O ministro Fachin criou um artigo imaginário dizendo que há um outro jeito de fazer essa distribuição de processos. E que neste caso Toffoli decidiu seguir esse modo alternativo: “delegação por designação.” É realmente revoltante pensar que a gente ainda paga salário (alto) para essas pessoas com suposto “notório saber jurídico” darem esse tipo de parecer.
Questão 4: O inquérito das fake news poderia ser conduzido em sigilo?
O advogado que assina a ação da Rede lembra da Súmula Vinculante n° 14, um documento do próprio STF, que prevê o óbvio: ser um direito do defensor, do advogado de qualquer acusado, no interesse seu cliente, ter acesso amplo aos elementos de prova, ao que já foi investigado. Todos sabemos que esse inquérito esteve sob sigilo absoluto até bem recentemente.
Este foi o único ponto em que Edson Fachin concordou com o questionamento da Rede. Fachin defendeu a publicidade prevista na Súmula 14 e ainda lembrou de um fato recente: o próprio Supremo (através de decisão do ministro Celso de Mello) quebrou há poucas semanas o sigilo de uma reunião secreta do presidente da República com seus ministros, porque havia uma investigação em curso e aquela reunião era considerada um elemento de prova.
Ou seja, para dar publicidade à investigação, quebrou-se o sigilo até de uma reunião de Estado, então não faz sentido manter os autos do inquérito das fake news em sigilo.
Questão 5: O sistema acusatório permite ao mesmo ente jurídico investigar, acusar e julgar?
Como eu disse no começo do texto a Constituição de 1988 diz claramente (artigo 129), que é “função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.” Pois acreditem, o ministro Edson Fachin disse que “a norma regimental permite esse exercício ‘infrequente e anômalo’, desde que se submeta a um elevado grau de justificação e a condições de possibilidade”.
Execício infrequente e anômalo? É isso que o STF está fazendo através desse inquérito? Isso é permitido, é? Que norma regimental é essa que não foi apontada no voto? A Constituição é que não é. Fachin também não apresentou argumentos para confirmar que havia esse “elevado grau de justificação” para o presidente Dias Toffoli ter aberto o inquérito das fake news sem consultar a Procuradoria Geral da República, a quem cabe, privativamente, investigar crimes e apresentar denúncias acusatórias.
Questão 6: O inquérito das fake news fere a liberdade de expressão?
O advogado da Rede Sustentabilidade lembrou que “em nome da liberdade de expressão é proibida a censura prévia no Brasil e que o direito de crítica é protegido como salvaguarda da democracia. Para responder a essa questão o ministro Edson Fachin citou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (adotado pela ONU em 1966).
O artigo 19 desse pacto impõe três condições para as pessoas terem direito à liberdade de expressão: “assegurar a proteção aos direitos ou à reputação de outrem; a proteção da segurança nacional; e a ordem pública ou a saúde e moral públicas.” E aí o ministro escreveu no voto.
“O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.” Sem mais delongas, endossou o ataque à liberdade de expressão, quando o exercício dessa liberdade fere a moralidade e o código penal.
Fico me perguntando se alguma vez o ministro já se deu ao trabalho de ler o que a turba raivosa da internet escreve sobre o presidente, sua esposa, seus filhos, alguns de seus ministros e sobre deputados e senadores em geral. Sobre os membros do Executivo e do Legislativo podem fazer qualquer acusação imoral, mas sobre os do Judiciário não?
Análise final do voto
O ministro Edson Fachin não concordou que o inquérito seja inconstitucional. Pelo voto dele, segue o baile. Apesar disso (e de todos os rodeios feitos através de verborragia jurídica), ele recomendou que o inquérito retome o curso previsto na Constituição, passando a ser acompanhado pelo Ministério Público. Parece piada, né?
Sugeriu também que se respeite a Súmula Vinculante n°14, aquela que determina que o inquérito não seja sigiloso ao menos para os advogados, que precisam ter acesso aos autos. E que a investigação seja feita apenas em cima de ameaças claras aos membros do STF e a seus familiares; protegendo-se as liberdades de expressão e de imprensa.
Uma prova de que ele concorda que a condução da investigação está errada foi a recomendação para que “sejam excluídos do inquérito postagens, compartilhamentos ou outras manifestações (inclusive pessoais) na internet, feitas anonimamente ou não, desde que não sejam parte de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais.”
E que sejam excluídas do inquérito também matérias jornalísticas. É importante lembrar que esse inquérito começou com a censura a uma reportagem da revista Crusoé que falava da delação do empreiteiro condenado Marcelo Odebrecht, insinuando que o presidente do STF era o “amigo do amigo do meu pai” na planilha de propinas pagas pela empreiteira.
Como a sociedade pode agir
Depois de analisar item por item esse voto do ministro Edson Fachin a gente entende ainda melhor aquela frase famosa do Ruy Barbosa, considerado o pai dos juristas e patrono dos advogados brasilieros: “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.
Para não terminar de forma pessimista esse artigo lembro que há sim a quem recorrer, embora o sistema tenha sido planejado para atuar num círculo vicioso. Contra decisões inadmissíveis e ilegalidades cometidas pelos juízes do Supremo a sociedade deve recorrer ao Senado.
São os senadores que aprovam os nomes indicados pelos presidentes da República para compor o STF e também são eles, só eles, que podem tirar o cargo de um juiz do Supremo. Já há vários pedidos de impeachment de juízes do STF no Senado e uma única pessoa pode levar esses pedidos adiante: o presidente do Senado Davi Alcolumbre.
Então se você achou absurdo esse voto do ministro Fachin, vê inconstitucionalidade no inquérito aberto pelo Toffoli e nas ações do ministro Alexandre de Moraes ou de qualquer outro, exija do senador Alcolumbre a votação dos pedidos de impeachment dos ministros.
Cristina Graeml
Cristina Graeml é jornalista formada pela UFPR (1992). Trabalhou como repórter de TV por 26 anos, fazendo coberturas nacionais e internacionais. Em 2010 fez parte da equipe que ganhou o Prêmio Esso e o Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, entre outros, pela série Diários Secretos da Assembleia Legislativa do Paraná. Está na Gazeta do Povo desde 2018. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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