A queda na produção industrial e o fechamento do comércio, como forma de combate ao novo coronavírus, tiveram impactos também no setor elétrico. Apesar de geralmente trabalharem com contratos de longo prazo, as empresas que comercializam e distribuem energia elétrica não estão imunes aos efeitos da diminuição da atividade econômica.
As distribuidoras, por exemplo, apontam para a retração no mercado e para a dificuldade que a queda na receita provoca na manutenção do setor. “Tivemos um aumento do consumo residencial em alguns lugares, mas, em média, a queda foi de 18% no consumo total”, afirma Marcos Madureira, presidente da Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee).
Essa configuração faz com que as empresas que atuam no mercado livre, em que pode haver a negociação direta entre consumidores e geradoras, passem por mais dificuldades. Reginaldo Medeiros, presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), explica que a maior parte dos contratos do segmento inclui a flexibilidade do montante de energia consumida.
“Como a maioria das empresas entrou em crise, pela redução da atividade econômica e pelas restrições de funcionamento, os contratantes optaram por exercer essa flexibilidade no mesmo momento. Isso gera um volume significativo de perdas financeiras e coloca as empresas do setor em dificuldade”, diz.
Segundo ele, porém, nesses casos os problemas têm sido resolvidos em comum acordo entre os consumidores e as empresas do setor.
Para as transmissoras, as dificuldades da pandemia afetam pelo menos 10% das 400 obras que estão sendo realizadas em linhas por todo o país. Procedimentos para a manutenção das linhas que já existem se restringem aos serviços essenciais, já que o custo das operações também aumentou por conta da prevenção contra o coronavírus.
“O que queremos é que haja segurança de que o fluxo de recursos dentro do setor vai continuar, ou seja, de que continuaremos recebendo os pagamentos mesmo com uma eventual inadimplência dos consumidores. Nós somos pagos pela disponibilização da linha, e não pela quantidade de energia que passa nela. Estamos buscando, junto ao governo, assegurar que os contratos sejam respeitados e que haja segurança jurídica”, diz Mario Miranda, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transmissão de Energia Elétrica (Abrate).
Enquanto isso, a inadimplência aumentou
Em paralelo à retração do mercado, houve aumento de cerca de 10% na inadimplência no setor elétrico. Antes da pandemia, a parcela de consumidores que não pagavam as contas de luz era baixa, de 3%. De acordo com o setor, o aumento na inadimplência ocorreu por conta da resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que proibiu cortes de energia pelo período de 90 dias.
“Esses dois fatores fazem com que faltem recursos dentro do setor elétrico”, afirma Madureira, da Abradee. Para resolver o problema, o governo publicou, no dia 18 de maio, o decreto 10.350, regulamentando a criação da chamada “Conta-Covid”. O mecanismo terá recursos para cobrir déficits e antecipar receitas às distribuidoras.
De acordo com o decreto, a conta será administrada pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que ficará responsável por gerir as operações de crédito de modo a prover os recursos para as empresas. Os empréstimos, concedidos por vários bancos, serão coordenados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Para que o mecanismo comece a funcionar, restam apenas algumas definições por parte da Aneel. No fim de maio, a Agência começou o processo de consulta pública para estabelecer a regulamentação. A proposta da Aneel é de que os financiamentos tenham teto de R$ 16,1 bilhões.
Segundo o presidente da Abradee, o esforço das distribuidoras será para não repassar o custo dos financiamentos aos consumidores. “Essa parcela da inadimplência vai voltar, porque as pessoas vão pagar a fatura depois, no segundo semestre. Esse valor vai ser utilizado para apoiar o pagamento desses empréstimos”, garante.
Isso não significa que os demais custos, como novas linhas de transmissão, que já afetariam a tarifa, não serão incluídos na conta de luz. A diferença é que, pelos termos postos pela Aneel, o reajuste na tarifa será gradual, durante cinco anos. O calendário para as alterações, além disso, continua valendo. Neste ano, a tarifa será reajustada a partir de 1º de julho.
Crise do setor elétrico pode fortalecer energias mais limpas?
Apesar das dificuldades, há quem acredite que o momento pode ser de rever alguns paradigmas do setor de energia. O advogado Rafael Filippin, por exemplo, avalia que a pandemia pode ser uma espécie de catalisador para a transição rumo a um mercado de energia mais sustentável – e não tão dependente dos combustíveis fósseis.
“As disputas que vêm ocorrendo no mercado de petróleo fazem com que os investidores percebam que é mau negócio ficar sujeito a tantos solavancos. Em países desenvolvidos há, de forma geral, um consenso de que não vale a pena gastar dinheiro em uma indústria que já estava com os dias contados”, diz Filippin, doutor em Meio Ambiente e coordenador do Departamento de Direito Público da Andersen Ballão Advocacia.
Em relatório publicado em maio, por outro lado, o Fórum Econômico Mundial alerta que os ganhos registrados a partir do Acordo de Paris estão em perigo por conta da pandemia.
“Além da incerteza sobre suas consequências de longo prazo, a pandemia deu origem a efeitos em cascata e em tempo real. O mercado de energia está passando pela tempestade perfeita, com a erosão de quase um terço da demanda energética global; o atraso de investimentos e projetos; as incertezas envolvendo o emprego de milhões de trabalhadores; e uma volatilidade sem precedentes no preço do petróleo, com implicações geopolíticas”, descreve Roberto Bocca, do Comitê Executivo do Fórum Econômico Mundial.
No caso brasileiro, a tendência não parece ser de avanço nas questões ambientais. De acordo com o documento produzido pelo Fórum, o Brasil ficou estagnado em 2020 no chamado Índice de Transição Energética, que mensura como estão os países no que diz respeito ao uso de energias limpas. O indicador considera fatores como a dependência de combustíveis fósseis, as emissões de carbono per capita e a poluição do ar.
Mesmo com as dificuldades, o relatório aponta que a pandemia pode, sim, ser a oportunidade para mudanças econômicas estruturais, envolvendo o estímulo ao investimento em fontes de energia limpa. Tudo depende, é claro, de vontade política.
Esta reportagem é a sétima da série “Retratos da economia“, que aborda os efeitos da crise do coronavírus sobre a economia brasileira. Leia também os textos sobre os impactos do coronavírus na indústria; no setor automotivo; na produção de alimentos; e no setor de combustíveis, além da entrevista com o presidente da Volkswagen do Brasil e da reportagem sobre os planos do governo para a retomada.
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