De vez em quando, esqueço. Encontro um amigo, um colega, um vizinho e estendo a minha mão. Ele recua, instintivamente, como se eu fosse um exibicionista tarado abrindo a gabardine.
Gracejamos, embaraçados, e eu recolho o adereço, como quem cobre as partes pudicas. Ele, para aliviar o prejuízo, oferece o cotovelo.
A conversa é breve –distância social, lembra?– e as expressões faciais são insondáveis –todos usamos máscara, lembra? Sem aperto de mão, sem conversa e sem expressão, que estamos ali fazendo? Nada. É bom dia, ou boa tarde, ou boa noite e até à próxima.
Confesso: nunca fui um entusiasta do aperto de mão. Conheço a história: em tempos antigos, era uma forma dos cavaleiros mostrarem que não estavam armados etc.
Pessoalmente, e por razões literárias, sempre preferi aquela pequena vênia que é possível ler, ou observar, nas histórias da senhora Jane Austen. Melhor ainda: uma vênia acompanhada por um bater de pés.
Mas se os canibais da civilização têm razão quando afirmam que apertos de mão já pertencem ao passado –até o doutor Anthony Fauci, a cabeça pensante da Casa Branca, o decretou– é preciso entender o que estamos perdendo.
Não, não é apenas um hábito anacrônico. É talvez um dos alicerces mais importantes de qualquer democracia liberal.
Leitores de Alexis de Tocqueville sabem o que digo. Por esses dias, tenho viajado novamente com o aristocrata francês por terras do Tio Sam. O ano é 1831 e o objetivo de Tocqueville é estudar o sistema prisional americano. Essa, pelo menos, é a justificação formal para visitar o país.
O interesse filosófico é outro: tentar compreender como funciona a nova era democrática que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por submergir toda a Europa.
O resultado desse estudo é “Da Democracia na América”, e uma das observações mais notáveis de Tocqueville lida, precisamente, com apertos de mão. Os americanos podem divergir radicalmente em matéria de renda ou riqueza. Mas, quando se encontram na rua, apertam as mãos, conversam, sorriem como se fossem do mesmo planeta.
No fundo, Tocqueville encontrava no novo mundo um hábito de sociabilidade que não existia no velho. Seria impensável que um nobre francês, deambulando pela vila, cumprimentasse assim um camponês. E mais impensável seria conversar com ele sobre as banalidades da vida.
Para Tocqueville, esse hábito traduzia a paixão pela igualdade social que existia em todos os americanos, independentemente da conta bancária. E essa paixão pela igualdade, paradoxalmente, só reforçava a liberdade. Como?
Porque a liberdade depende da “arte da associação”, ou seja, da capacidade que os americanos tinham (e ainda têm, embora menos) de se associarem civicamente em mil propósitos ou projetos.
Como afirmava o autor, os maiores inimigos da liberdade são a centralização do poder e o individualismo excessivo. A “arte da associação” tempera esses dois demônios.
Tocqueville compreendeu essa verdade que hoje nos parece evidente: a ausência de uma sociedade civil forte deixa os indivíduos isolados e fracos perante o poder.
Razão pela qual, como bem lembrava Roger Scruton nas suas visitas ao leste da Europa durante o comunismo, uma das primeiras medidas de qualquer governo autoritário é o enfraquecimento e a destruição da sociedade civil e das suas formas de associação.
Vizinhos desconfiam de vizinhos. Amigos são delatores de amigos. Universidades deixam de ter autonomia, igrejas são perseguidas, clubes de bairro se evaporam. Entre o governo e o indivíduo, só há deserto e nada. O indivíduo não tem para onde fugir –o supremo sonho do tirano.
Pelo contrário: sociedades civis fortes e independentes do poder central são um sintoma de vitalidade democrática.
O mundo pós-corona não terá apertos de mão? Nem conversas de circunstância? Nem sorrisos?
Estaremos, cada um de nós, enfiados na nossa bolha, fugindo dos outros como se eles fossem apenas transmissores de doença?
Cuidado, bom povo: esse é o ambiente natural da ditadura, não da democracia. Não há democracia que resista a um exército de desertores.
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