Em São Paulo, neste domingo (24), os soldados e oficiais da Polícia Militar (PM) prestaram continência aos manifestantes de mais um protesto de rua, na Avenida Paulista, contra o confinamento e contra o governador João Doria.
No Ceará, numa manifestação idêntica, a polícia prendeu participantes e confiscou seus celulares e carros, sem qualquer base na lei – eram objetos de propriedade pessoal, e não prova de crime. (Que crime? Sair na rua?)
Dois estados, dois países. Onde fomos parar? O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, dois meses atrás, acabar com a federação no Brasil, ao dar autonomia absoluta aos governadores e prefeitos no trato da Covid-19 e cassar do governo federal qualquer autoridade sobre o assunto. O resultado começa a aparecer, com episódios de anarquia como esses. Só tende a piorar, se as coisas continuarem abandonadas à sua própria natureza.
Se a lei não vale no Ceará, por que haveria de valer em São Paulo? Se o governador de São Paulo não tem de obedecer às leis nacionais, por que a PM teria de obedecer ao governador? É o raciocínio que os policiais paulistas, na prática, parecem ter adotado em sua conduta diante da última manifestação na Avenida Paulista.
A lei, como se sabe há séculos, não pode ser aplicada por partes; ou vale por inteiro e para todos, ou não vale nada. No Brasil, por conta da irresponsabilidade de ministros do STF que tomam decisões individuais e estão empenhados apenas em impedir o Poder Executivo de governar, a legalidade se perdeu. São 27 constituições diferentes – ou milhares, porque os prefeitos também foram transformados em presidentes das repúblicas municipais. É nisso que está dando a aventura de submeter a justiça às posições políticas do Supremo.
É inútil querer anular o episódio de ontem na Avenida Paulista não falando dele – dezenas de vídeos e áudios, gravados em celulares, estão circulando pelas redes sociais. Tão inútil quanto isso foi a tentativa do governador João Dória de dizer – em nota oficial – que o apoio dos policiais à manifestação era falso; segundo ele, as continências teriam sido “em homenagem a um soldado da PM morto no sábado”.
Aí já é o desespero. Porque os policiais fariam a sua homenagem ao colega justo na hora e local do protesto de rua? E as palmas que bateram para os manifestantes? E os cumprimentos e selfies?
O fato é que a cada dia o Brasil dá mais um passo na direção da desordem. Há o risco real de que o governador Doria dê uma ordem à PM e não seja obedecido – que tal uma coisa dessas?
Os comandantes da tropa, é claro, jamais vão admitir que seus comandados estejam fazendo algo fora da normalidade. E isso vai mudar o quê? A realidade não pode ser anulada por notas oficiais, ou pelo fato de não aparecer no noticiário.
Quando a Suprema Corte de Justiça do país dá a um prefeito de interior o poder de decidir quais direitos o cidadão tem, e a quais obrigações precisa obedecer, a anarquia só tende a prosperar.
J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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