O depoimento de Moro e o vídeo da reunião ministerial

Jair Bolsonaro e Sergio Moro durante a reunião ministerial de 22 de abril.| Foto: Marcos Correa/Presidência da República

Mais uma vez a ebulição política que o Brasil vive – como se precisássemos de mais preocupações em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos, embora os dois assuntos acabem interligados – impediu que muitas pessoas vissem o vídeo da reunião de 22 de abril entre o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros da forma como ele deveria ser visto. Assim como ocorrera com o depoimento do ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal em 2 de maio, criaram-se expectativas irreais, e que justamente por serem irreais não se concretizaram, para decepção de uns e comemoração de outros.

Seria muito ingênuo imaginar que, diante de dezenas de ministros, Bolsonaro montasse ou admitisse explicitamente alguma tramoia de grandes proporções com o objetivo de proteger a si mesmo ou aos filhos – e, de fato, nada disso ocorreu. Até por isso, a discussão se voltou para uma série de aspectos secundários, seja para elogiar, seja para criticar: desde o linguajar chulo – que, bem sabemos, nunca foi exclusividade do atual ocupante da cadeira presidencial – até o tom militante das falas do presidente e de alguns ministros, passando por discussões de toda sorte entre os participantes da reunião. Por ora não é nosso objetivo tratar dessas questões, e nem da conveniência da divulgação do vídeo completo, questionada por Bolsonaro nas mídias sociais com uma menção à recentemente aprovada lei de abuso de autoridade. As únicas questões que interessam, agora, são: o conteúdo do vídeo confirma o que Moro disse à Polícia Federal? E, se confirma, o que isso significa?

No depoimento, após explicar que Bolsonaro vinha pressionando pela saída de Maurício Valeixo, então diretor-geral da Polícia Federal, porque o presidente “precisava de pessoas de sua confiança, para que pudesse interagir, telefonar e obter relatórios de inteligência”, Moro afirmou “que o próprio presidente cobrou em reunião do Conselho de Ministros ocorrida em 22 de abril de 2020 (…) a substituição do SR/RJ [o superintendente da PF no Rio de Janeiro], do diretor-geral e de relatórios de inteligência e informação da Polícia Federal; que o presidente afirmou que iria interferir em todos os ministérios e, quando ao MJSP [ministro da Justiça e Segurança Pública], se não pudesse trocar o superintendente do Rio de Janeiro, trocaria o diretor-geral e o próprio ministro da Justiça”. Pois basta comparar essas afirmações com o que Bolsonaro disse na reunião.

As únicas questões que interessam, agora, são: o conteúdo do vídeo confirma o que Moro disse à Polícia Federal? E, se confirma, o que isso significa?

transcrição registra dois momentos em que Bolsonaro tratou do assunto. Mais no início da reunião, o presidente diz que “Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações. Eu tenho as… as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. Abin tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô! Aparelhamento etc. Mas a gente num pode viver sem informação. (…) O serviço de informações nosso, todos, é uma… são uma vergonha, uma vergonha! Que eu não sou informado! E não dá pra trabalhar assim. Fica difícil. Por isso, vou interferir! E ponto final, pô! Não é ameaça, não é uma… uma extrapolação da minha parte”.

E, depois que vários outros ministros se manifestaram, Bolsonaro volta a falar: “Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os ofi… que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao… ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho. Então, pessoal, muitos vão poder sair do Brasil, mas não quero sair e ver a minha a irmã de Eldorado, outra de Cajati, o coitado do meu irmão capitão do Exército de… de… de… lá de Miracatu se foder, porra! Como é perseguido o tempo todo. Aí a bosta da Folha de S.Paulo diz que meu irmão foi expulso dum açougue em Registro, que tava comprando carne sem máscara. Comprovou no papel, tava em São Paulo esse dia. O dono do… do restaurante do… do pa… de… do açougue falou que ele não tava lá. E fica por isso mesmo. Eu sei que é problema dele, né? Mas é a putaria o tempo todo pra me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira”.

Assim, o que Moro afirmou à PF a respeito da reunião coincide com o que foi dito por Bolsonaro naquela ocasião. E aonde isso nos leva? Aqui é preciso lembrar que o próprio Moro, com toda a sua experiência de duas décadas na magistratura, mesmo considerando “arbitrária” a interferência na PF, “não afirmou que o presidente teria cometido algum crime” em seu depoimento. A lei dá ao presidente da República o poder de nomear o diretor-geral da PF, disso não há dúvida alguma.

Mas é aqui que chegamos ao centro da questão. Moro não saiu porque o presidente estivesse cometendo um crime, mas porque o então ministro fez da autonomia da Polícia Federal um valor que julgou necessário defender até onde foi possível. Moro conhece a lei e sabe que Bolsonaro poderia substituir Valeixo quando bem entendesse, mas considerou que as razões do presidente para a substituição eram inadequadas e que essa autonomia acabou desmoralizada com a exoneração de Valeixo, publicada na calada da noite e depois da qual não haveria outra atitude a tomar a não ser o pedido de demissão.

Que razões seriam essas? A julgar pela transcrição da reunião, a insatisfação do presidente com a Polícia Federal era motivada por questões ligadas diretamente a sua família. É possível que Bolsonaro estivesse se referindo à sua segurança pessoal, como alegou posteriormente, e não ao aparato da Segurança, em maiúscula? Se assim for, no entanto, há registros que mostram ter havido alterações na sua equipe de segurança pessoal um mês antes da reunião ministerial, o que em tese já teria eliminado o motivo da reclamação. Além disso, nos parece inverossímil que uma queixa deste tipo fosse algo que tivesse de ser resolvido na presença de todos os ministros, muito menos que tivesse potencial de atingir família e amigos. Bem mais provável, por todo o contexto das falas, é que Bolsonaro estivesse se referindo à “Segurança” de forma mais ampla, o que incluiria as investigações da Polícia Federal. Uma probabilidade que fica reforçada pelas mensagens de WhatsApp enviadas depois da reunião, quando Bolsonaro mostrou estar insatisfeito com o fato de deputados aliados serem investigados pelos atos onde houve pessoas pedindo o fechamento do Congresso e do STF.

Se houve ou não desvio de finalidade nas mudanças promovidas por Bolsonaro, ou algum crime de qualquer natureza, esta é uma avaliação que caberá à Procuradoria-Geral da República e, eventualmente, ao Supremo Tribunal Federal. Quanto a Sergio Moro, tudo o que o vídeo da reunião ministerial comprova é que ele não inventou nada em seu depoimento à Polícia Federal. Exagerar as suas falas anteriores para depois afirmar que o vídeo as desmente, na tentativa de desmoralizá-lo como um “mentiroso traidor”, é cometer uma injustiça e faltar com aquela mesma verdade que o presidente defendeu de forma tão enfática no vídeo que o Brasil inteiro teve a chance de ver.

Confira matéria do site Gazeta do Povo.

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