Projetos inúteis na pandemia: Congresso quer legislar sobre questões jurídicas já solucionadas

Sessão remota do Senado| Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Deputados e senadores, na ânsia de mostrar serviços aos seus eleitores durante a pandemia, encheram as secretarias do Senado e da Câmara com uma série de protocolos de propostas legislativas, das mais criativas, para solucionar dilemas durante a pandemia. O problema é que, como já se viu outras vezes no Congresso em momentos de calamidade pública, alguns desses projetos de lei são inúteis, por serem esdrúxulos e causar insegurança jurídica ou por suas soluções já estarem previstas nas leis do país.

O alerta é de juristas da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas). A entidade, atuante em questões jurídicas relacionadas à família, identificou propostas de parlamentares que, insistem, não podem ter passado por uma revisão jurídica de qualidade.

Esse era o caso do projeto de lei 1627/20, da senadora Soraya Thronicke (PSL-MS), que tratava de questões de família durante o isolamento social. Além de propor itens já previstos em normas jurídicas ou pacificados pelos tribunais, como casamento por videoconferência, redução de pensão alimentícia, suspensão temporária de guarda, sucessões por meio de testamento, etc., alguns dos pontos elencados no texto traziam insegurança jurídica. O projeto era tão inconsistente que foi retirado pela própria senadora em 5 de maio.

Além de prever o casamento por videoconferência – já regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça durante a pandemia, para evitar aglomerações -, a proposta da senadora excluía a obrigação da apresentação de documentos de habilitação, exigidos para a segurança dos cônjuges. “A proposta do casamento por videoconferência dispensando o processo de habilitação é de uma insegurança brutal; o contrato é banalizado”, explica Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Adfas.

Pensão alimentícia e guarda

Ainda no mesmo projeto que foi retirado, a senadora Soraya Thronicke queria a instituição de normas de caráter transitório e emergencial para a redução de 30% da pensão alimentícia durante a crise, a flexibilização da guarda dos filhos e o regime de convivência, entre outros. Temas com regras já estabelecidas no Código Civil para todas essas questões.

“A questão de alimentos, você não pode dizer que vai reduzir a pensão alimentícia de todo mundo a 30%, porque cada caso é um caso. Quando o juiz fixa [o valor da pensão], ele pode ser alterado a qualquer tempo. Se você provar, por exemplo, que está desempregado, sua pensão pode baixar ou pode ser diminuída. Então, para que fazer uma lei para a pandemia se você já pode fazer isso?”, comenta Regina Beatriz, presidente da Adfas.

Em relação à guarda dos filhos, a juíza Ana Claudia Brandão, presidente da Comissão de Bioética da Adfas, explica que já é possível por lei mudar a guarda, como por exemplo no caso de uma pai que é medico e pode colocar a saúde do filho (a) em risco. “Não precisa de uma lei nova para isso”, ressalta.

As mesmas considerações sobre a existência de regras no ordenamento jurídico brasileiros valem para outras questões como testamento e casamento de pessoa que está morrendo (in extremis) ou está no hospital.

Outros projetos

Mas outros projetos questionáveis continuam tramitando nas casas legislativas, como o PL 2033/2020, de autoria do senador Radolfe Rodrigues (Rede-AP), que prevê o pagamento de indenização por falta de leito em UTIs durante a pandemia. O valor descrito no texto seria de R$ 60 mil por membro da família. O fato é que já existem mecanismos para ressarcir o contribuinte nesses casos, afirma a juíza Ana Claudia.

“Não é uma novidade e sim uma responsabilidade civil do Estado. Se a pessoa morrer em decorrência da falta de leito, é o Estado que tem que se responsabilizar. Já temos mecanismos para mandar pagar essa indenização”, explica.

Outro projeto considerado desnecessário pela magistrada é o 2136/2020, de autoria do deputado Célio Studart (PV-CE), que dispõe sobra a visita virtual dos familiares a pacientes internados. Diante da situação de parte dos hospitais e da infraestrutura necessária, é quase impossível pensar que, de fato, a medida viesse a ser colocada em prática, caso fosse aprovada pelos parlamentares.

Repetições

Dentre os mais de 300 projetos apresentados até abril pelos parlamentares, alguns têm objetivos semelhantes, como o estabelecimento da renda mínima para trabalhadores de baixa renda, informais ou desempregados, liberação de saque do fundo do FGTS e proteção do emprego. Entre outras propostas, existem os que repetidamente defendem a isenção de cobranças de tarifas de água e energia elétrica durante a pandemia, e os que impossibilitam o despejo em caso de não pagamento de aluguéis.

Com exceção de dois projetos – o 13.979/2020, que trata do isolamento na quarentena e do tratamento compulsório, e ainda o 13.982/2020, que concede auxílio emergencial a uma série de classes profissionais, a juíza Ana Claudia reafirma que não é preciso criar leis específicas de pandemia. “Essas dois são totalmente coerentes com a situação de pandemia. A Constituição garante a nossa liberdade de locomoção e também a autonomia do paciente. Então, se você vai restringir esse direito, aí sim é preciso uma lei específica de pandemia”, comenta.

Confira matéria do site Gazeta do Povo.

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