A tragédia da Covid-19 está pondo de novo em evidência, talvez mais do que nunca, o abismo infinito que existe no Brasil entre o mundo dos cidadãos e o mundo dos que mandam nos diversos níveis de governo. Não se trata apenas de constatar a flagrante hipocrisia de autoridades que falam hoje em “defesa da saúde pública” sem nunca terem tido na vida, uma única vez que seja, se internado num hospital do SUS, aguentado horas de fila para serem atendidos num ambulatório ou esperado seis meses para fazerem um exame clínico. Esse é um escândalo permanente e sem cura.
A novidade, agora, é a atitude cada vez mais agressiva que adotam contra a população ao insistir na paralisia do país para combater a epidemia. Qual é o problema com esse “distanciamento social” tão virtuoso que estão impondo às pessoas? Será que ninguém entende que tudo o que os governantes estão pedindo é uma coisa facílima: ficar “em casa”, apenas isso?
De fato, para a maioria dos governadores de Estado, prefeitos de grandes ou médias cidades e membros do Senado e da Câmara dos Deputados, obedecer a “quarentena”, como todo bom patriota deve fazer, é muito fácil. No mundo em que habitam, e que nada tem a ver com a realidade dos que são governados, tudo é fácil. Não é preciso ir trabalhar todos os dias, porque no fim do mês seus vencimentos são depositados sem um tostão a menos – é você, por sinal, quem paga o sustento de todos eles.
Qual seria o problema com as barbearias fechadas? É só chamar o seu barbeiro em casa – assim como o “personal trêiner”, a manicure ou o alfaiate que trabalha sob medida. Qual a dificuldade com as filas para comprar comida nos supermercados? É só mandar o seu motorista ir fazer as compras em seu lugar, ou chamar o “delivery”. (Os motoristas das autoridades, por sinal, são associados aos animais e outros entes sem alma em relação ao “distanciamento social”. Não precisam cumprir quarentena nenhuma – ao contrário, continuam obrigados a ir trabalhar enquanto os chefes ficam “em casa”.)
Governadores, prefeitos e parlamentares estão convencidos de que não existe problema nenhum com o seu emprego; basta fazer teletrabalho. Sua loja está há dois meses fechada? Fácil: é só vender “online”. Você está sofrendo com a proibição de obedecer aos rodízios de veículos? Muito simples: tenha dois carros, um para os dias pares, outro para os dias ímpares. Por que esse nervosismo todo? Por que essa gente que reclama não faz como a maioria dos 12 milhões de funcionários públicos, os ricos ou os que vivem de renda, que não precisam comparecer ao local de trabalho todos os dias? Por que o povo não se inspira no exemplo de 80% os professores da rede pública de São Paulo, que segundo uma pesquisa recém-publicada “não se sentem preparados” para voltar ao trabalho”? É isso: tudo o que o cidadão tem de fazer é declarar-se “não preparado” para o trabalho.
É uma agressão aberta ao público que governadores, políticos e burocratas continuem sem entender que há milhões de brasileiros que estão ficando desesperados ao ver, a cada dia, que têm menos dinheiro no bolso para o seu sustento e o de suas famílias. Como não precisam encarar essa dificuldade, acham que o resto das pessoas também não. É em momentos como os de agora que o Brasil pode constatar, para além de qualquer dúvida, o quanto o público pagante é desprezado pelos que elege.
J.R. Guzzo
J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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