‘Estadão’ acompanhou a rotina de trabalho no Hospital Municipal do M’Boi Mirim, no extremo sul de São Paulo. Sem poder fazer isolamento e com más condições de saúde, moradores da região já chegam à unidade em estado crítico
Na parede, a pintura com desenhos coloridos de peixinhos, sereias e outras figuras do fundo do mar contrasta com a realidade chocante observada por quem entra naquela sala do Hospital do M’Boi Mirim, no Jardim Ângela, extremo sul de São Paulo. Logo no primeiro leito está João (nome trocado para preservar a privacidade do paciente), de 59 anos, covid-19 positivo, entubado, com cinco bombas de infusão de medicamentos ligadas ao seu corpo e sendo preparado para uma sessão de diálise. Nos leitos ao seu lado, na sua frente e em todos os espaços possíveis daquela ala estão outros adultos em situação semelhante, todos infectados pelo coronavírus e em estado muito grave.
Até poucas semanas atrás, o espaço funcionava como setor de observação para crianças que chegavam ao pronto-socorro do hospital – por isso os desenhos na parede. Hoje, a ala opera como Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para adultos com covid-19.
O mesmo aconteceu com os leitos de observação do pronto-socorro adulto. E com quatro salas do centro cirúrgico. E também com o setor de recuperação pós-anestésica. E até com o estacionamento e espaços para treinamentos de funcionários. Todos foram adaptados para receber pacientes com coronavírus e, mesmo com a expansão, a taxa de ocupação do hospital sobe a cada dia, aumentando a angústia de quem está na linha de frente no combate à pandemia no hospital de uma das áreas mais pobres da capital paulista.
Desde março, com doações e reformas, o hospital conseguiu aumentar de 20 para 140 o número de leitos de UTI para adultos. Outros 80 devem ser abertos na próxima semana. Mas o número de internações, principalmente as de pacientes mais graves, tem crescido a uma velocidade assustadora.
Na última quinta-feira, 14, quando o Estadão visitou o hospital e acompanhou por um dia o trabalho da equipe médica e de enfermagem, já eram 97 pacientes com covid-19 internados na UTI, o dobro do registrado três semanas antes. Outros 93 estavam internados em leitos de enfermaria.
Com exceção da maternidade do hospital, que segue funcionando, todos os demais leitos foram transformados em espaços para covid. Há uma semana, com a escalada de internações na cidade, o hospital fechou o pronto-socorro adulto. Só aceita transferências de outras unidades ou emergências. Como em alguns hospitais municipais que não tiveram expansão, a UTI já chegou ao limite ou está com 90% de sua ocupação, o M’Boi Mirim, cuja taxa de ocupação da UTI estava em 70%, virou referência não só para a zona sul, mas para toda a cidade. São, em média, de 30 a 60 novas admissões por dia.
“Se a gente não tivesse feito essa expansão, já teríamos colapsado em março. Todo meu esforço é para preparar o hospital para que a gente não chegue ao ponto de ter que escolher (quem terá atendimento ou não). Tenho dormido menos por causa disso. Vou dormir pensando na covid-19. Sonho com a covid-19. É a maior pressão da carreira de cada um aqui. Ninguém quer ter que acordar um dia e decidir quem vai ter uma chance”, diz Fabiana Rolla, diretora do hospital.
Se a pandemia já é preocupante pela velocidade da transmissão e pelos danos que o vírus é capaz de causar no corpo, na periferia ela assume ares ainda mais cruéis. Ao infectar uma população sem condições econômicas e habitacionais de fazer isolamento, com doenças crônicas descompensadas e sem acesso fácil a médicos aos primeiros sinais da doença, o coronavírus faz com que muitos dos pacientes cheguem ao Hospital do M’Boi Mirim já em estado muito grave.
“Essa é a área da cidade com a maior carência de leitos e com um dos menores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano). Muita gente aqui vive em área de ocupação. São pessoas que não têm condições de ter os cuidados ideais de saúde, muitos jovens com doenças crônicas não tratadas, muita gente que não pôde parar de trabalhar na rua. O isolamento faz uma grande diferença e eles não têm essa opção”, relata Fabiana.
Médico responsável pelo pronto-socorro do hospital há três anos, Luís Fernando Faitta já estava habituado a atender muitos pacientes graves no plantão. Casos de AVC, acidentes de trânsito e violência eram comuns, mas não na dimensão que ele vê hoje. “Já tive de entubar oito pacientes em um único dia. Isso é muito fora da nossa rotina, mesmo para uma emergência. Esses pacientes não têm um médico de rotina para consultar logo no início dos sintomas, então eles chegam graves. Já recebi paciente com oxigenação de 46%. Isso é chocante”, conta.
“O perfil da nossa UTI mudou. Hoje ela está praticamente tomada por doentes em estado absolutamente crítico. Antes da pandemia, tínhamos, em média, 40% dos pacientes de UTI entubados. Com a covid-19, esse índice chega a 90%. O porcentual de doentes que precisam de diálise passou de 15% para 50%. É assustador”, afirma Fabiana.
SEM ISOLAMENTO, VÍRUS SE ESPALHA NAS FAMÍLIAS E PARENTES FICAM INTERNADOS JUNTOS NA UTI
O drama é agravado pela rápida proliferação da doença entre moradores da mesma casa, situação comum em áreas como o Jardim Ângela, onde parte significativa da população vive em moradias precárias, com um cômodo sendo compartilhado por vários parentes.
O hospital é responsável pelo atendimento de uma área com 1,3 milhão de pessoas no perímetro das duas subprefeituras com o maior número de domicílios em favelas de toda a cidade. Juntos, os distritos pertencentes às subprefeituras do M’Boi Mirim e do Campo Limpo têm 101 mil casas nessa situação, segundo dados da Secretaria Municipal da Habitação (Sehab).
Sem condições ideais para o isolamento, são cada vez mais frequentes casos de dois ou mais membros de uma família internados ao mesmo tempo. “A gente vê falecer um pai e um filho, um casal. Tem de passar o boletim médico para um neto porque a mãe está internada e a avó também. É muito difícil”, relata Antonio Bento Ferraz, médico diarista da UTI do M’Boi Mirim.
No dia da visita do Estadão, a equipe lidava com ao menos dois casos do tipo. Em um deles, mãe e filha estavam internadas juntas na UTI. No outro, um casal estava hospitalizado na mesma unidade quando o marido não resistiu. A esposa, ainda em condição crítica, permanecia na UTI sem saber da perda do companheiro.
Passar tantas notícias tristes por boletins médicos à distância, sem poder detalhar a situação nem acolher o familiar, tem castigado a equipe do M’Boi Mirim. Tanto que a direção do hospital aceitou adotar um protocolo para permitir que parentes possam entrar na UTI para se despedir de familiares em estado muito grave, quando já não há muitas esperanças.
As autorizações são dadas geralmente para familiares jovens, sem nenhum fator de risco. Eles têm de assinar um termo de consentimento e tomar todas as precauções para evitar a contaminação. “A família usa todos os equipamentos de proteção individual. É uma tentativa de continuarmos a humanização nesse final de vida. É a única chance de despedida porque os caixões saem daqui lacrados”, explica Felipe Piza, coordenador médico do departamento de pacientes graves do hospital.
‘A oportunidade de vir aqui falar uma última palavra para a pessoa que está partindo não tem um preço ou um valor palpável’Antonio Bento Ferraz, médico diarista da UTI
A interrupção de ações de humanização da UTI do M’Boi Mirim foi uma das mudanças trazidas pela pandemia que mais abalaram a equipe. O hospital, apesar de municipal, é administrado por meio de um convênio da Prefeitura de São Paulo com o Hospital Albert Einstein, onde as UTIs há alguns anos já vinham passando por um processo de maior abertura para visitas e acompanhamento de familiares. O mesmo ocorria no M’Boi Mirim.
“A gente já estava acostumado a ver mais pessoas aqui. Parentes circulando, visitando. De repente tudo parou. O ambiente ficou mais frio. Agora o que prevalece são os apitos dos aparelhos”, diz Juliana Anacleto, coordenadora de enfermagem das UTIs.
A intensidade dos sons impressiona. Por causa da gravidade dos doentes, os apitos são muito mais frequentes e incômodos do que em outros contextos de UTI, diz Juliana. “O monitor, o respirador e as bombas de infusão emitem esses sons. Quanto mais grave o paciente, mais aparelhos estarão ligados nele e mais apitos vamos ouvir. Na UTI, temos uma média de uso de três ou quatro bombas de infusão de medicamentos por paciente. Nos casos de covid, chegamos a usar 12”, relata.
‘É PESADO TODO DIA TER DE DAR NOTÍCIAS RUINS PARA FAMILIARES’, DIZ CHEFE DO PRONTO-SOCORRO
Coordenadores do pronto-socorro, o médico Luis Fernando Faitta e o enfermeiro Eliton Paulo Leite Florenço explicavam para a reportagem como funciona a sala de estabilização do PS, onde pacientes graves com covid-19 chegam, quando um grito na sala ao lado interrompe a entrevista: “Parada!”
O alerta, feito por uma profissional da enfermagem, chamava a atenção sobre um paciente em observação no PS, já entubado, que acabara de sofrer uma parada cardíaca. O homem, na faixa dos 50 anos, rapidamente começa a receber massagem torácica em uma tentativa da reanimação.
Faitta e Florenço seguem apressados ao local para dar apoio à equipe que atua no caso. Enquanto um técnico de enfermagem faz a massagem cardíaca, outros sete profissionais cumprem funções de apoio, como monitorar o tempo, monitorar os sinais vitais, injetar medicação de reanimação e ajudar na paramentação dos próximos profissionais da fila que participarão da reanimação. A massagem cardíaca exige força física e ritmo. Depois de três minutos, o profissional é trocado para que o cansaço acumulado no exercício não prejudique o procedimento.
O cenário, já dramático, torna-se ainda mais desafiador com a necessidade de adoção de protocolos de segurança extras para os ambientes de internação de covid-19. “Se fosse antes da pandemia, toda a equipe estaria auxiliando no caso de perto. Agora, eles precisam parar, colocar toda a paramentação para poder tocar no paciente”, explica Fabiana Rolla, diretora do hospital. “Essa é a nossa realidade. As pessoas não estão tendo noção do que essa doença causa e do que a gente está vivendo aqui”, desabafa Fabiana.
Após dois ciclos de massagem cardíaca de cerca de três minutos cada, o paciente volta à vida. Sensação de alívio para a reportagem e para os profissionais de saúde. Para eles, porém, não foi uma situação de exceção. Os coordenadores da unidade explicam que é justamente essa piora repentina dos pacientes com covid-19 o que torna mais difícil o trabalho na linha de frente da pandemia.
“Eu trabalho de segunda a sábado, às vezes domingo também. Mas domingo à noite tem sido bem pesado porque eu sei que vai começar tudo de novo. Eu venho feliz para cá na segunda-feira. Mas às vezes descubro que aquele cara que cuidei num dia veio a óbito no dia seguinte. É muito difícil”, diz o enfermeiro Florenço.
“O que mais impacta é todo dia ter que dar notícias ruins para familiares. Duas, três, quatro famílias que a gente tem de falar: olha, seu pai está complicando; sua mãe está piorando; sua esposa não vai voltar para casa. É muito difícil”, completa Faitta.
Diante da pressão, o hospital criou um canal de atendimento psicológico voltado aos profissionais. “Eu tento me apoiar no número de pessoas que têm alta, que é muito maior dos que não sobrevivem. Quando a gente vê isso, percebe que as notícias boas ainda são maiores do que as ruins”, ressalta o médico.
Até a última quinta-feira, além dos 190 internados com covid-19, outros 690 pacientes com a infecção já haviam passado pelo Hospital do M’Boi Mirim: 571 tiveram alta ou foram transferidos para hospitais de campanha após apresentarem melhora. Outros 119 morreram. “A covid-19 nunca vai vencer essa guerra. Ela pode trazer algumas baixas, mas ganhar ela não vai”, diz Florenço.
COM FALTA DE AR, MAS MEDO DE PERDER O EMPREGO, FRENTISTA SÓ PROCUROU HOSPITAL NA FOLGA
Jovem e sem histórico de doença crônica, o frentista-caixa Roberto Zito Saraiva, de 32 anos, só levou a covid-19 a sério quando veio a falta de ar. “Não vou mentir para você. Eu achei que esse vírus não era nada. Percebi algo estranho quando fiquei cansado só por subir a escada de casa. Subi uns degraus e tive que sentar, de tanto cansaço”, diz.
Mesmo com o desconforto respiratório ao fazer esforço, esperou três dias para procurar um hospital. Por medo de perder o emprego, preferiu aguardar a data da folga para buscar assistência. “Estão mandando muita gente embora no meu serviço e eu não queria problema”, afirma.
Morador do Jardim Ângela, Saraiva procurou o Hospital do M’Boi Mirim no dia 7 de maio e foi internado. “Como eu estava com falta de ar e febre, já me colocaram no oxigênio. Fiquei com medo de ficar mais grave, ser entubado”, conta. Sete dias depois, quando o Estadão conversou com Saraiva, ele já conseguia respirar sozinho e tinha acabado de receber alta. “Agora tenho que me cuidar. Eu não percebi, mas tinha muito risco. Atendo muita gente, mexo com dinheiro”, diz.
Saraiva ficou internado em um dos quartos do novo setor aberto no hospital para atender os doentes com covid-19. O prédio, de dois andares e cem leitos de enfermaria, foi construído em 33 dias em um terreno que abrigava um estacionamento. A obra foi bancada pelo Hospital Albert Einstein e pelas empresas Ambev e Gerdau.
Cada dormitório tem seis leitos. Uma cortina separa uma cama da outra. Os doentes não têm muito espaço nem privacidade, mas elogiam o atendimento. “Posso não ter hotelaria cinco estrelas, mas tenho todos os recursos que preciso para tratar o paciente com dignidade”, diz Fabiana Rolla, diretora do hospital.
Ela afirma que boa parte dos pacientes tem histórias semelhantes à de Saraiva: não podem ficar em trabalho remoto, seja por ocuparem funções em serviços essenciais ou por trabalharem como autônomos.
Um dos companheiros de quarto de Saraiva, o gerente administrativo Pedro Correa Santos, de 47 anos, também não pôde deixar de trabalhar presencialmente e acredita ter sido infectado nas idas e vindas ao trabalho. Ele diz ter ficado surpreso com a gravidade da doença. “Não tenho nenhuma doença e foi bem assustador ficar com a falta de ar. Fui três vezes em uma UBS (unidade básica de saúde) com sintomas, mas, como não estava tão grave, me mandavam de volta para casa. Como não melhorei, na terceira vez eles me encaminharam para o pronto-socorro da Lapa, que me mandou para cá. Quando você não consegue respirar, bate o desespero”, diz.
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